capítulo 23

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Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da
casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele
mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta,
cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado
Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o
com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de
gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma
da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de
mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava
em português com os clientes do restaurante: mascates, comandantes de
embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a
inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios
e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e
nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe,
francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas
em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um
naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto,
lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda
acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as
dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando
a sesta.
Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se dizia
poeta, um certo Abbas, que tinha morado no Acre e agora vivia navegando no
Amazonas, entre Manaus, Santarém e Belém. Halim passou a frequentar o
Biblos aos sábados, depois ia todas as manhãs, beliscava uma posta de peixe , uma berinjela recheada, um pedaço de macaxeira frita; tirava do bolso a
garrafinha de arak, bebia e se fartava de tanto olhar para Zana. Passou meses
assim: sozinho num canto da sala, agitado ao ver a filha de Galib,
acompanhando com o olhar os passos da gazela. Contemplava-a, o rosto
ansioso, à espera de um milagre que não acontecia. Ia pescar nos lagos e
trazia tucunarés e postas de surubim para Galib. O dono do Biblos lhe
agradecia, não cobrava o almoço, e Halim se entusiasmava com essa
intimidade que ainda não bastava para aproximá-lo de Zana

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora