Capítulo 27

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Tempos depois, entendi por que Zana deixava Halim falar sobre qualquer
assunto. Ela esperava, a cabeça meio inclinada, o rosto sereno, e então falava,
dona de si, uma só vez, palavras em cascata, com a confiança de uma
cartomante. Foi assim desde os quinze anos. Era possuída por uma teimosia
silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois, armada por
uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o
outro estatelado. Assim fez. Solitária, reclusa entre quatro paredes, extasiada
com os gazais de Abbas, Zana foi falar com o pai. Já havia decidido casar-se
com Halim, mas tinham de morar em casa, nesta casa, e dormir no quarto
dela. Fez a exigência ao Halim na frente do pai. E fez outra: tinham de casar
diante do altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das maronitas e
católicas de Manaus.
Galib convidou alguns amigos do porto da Catraia, das escadarias dos
Remédios, pescadores e peixeiros que abasteciam o Biblos, e também
compadres dos lagos da ilha do Careiro e do paraná do Cambixe. Uma mistura
de gente, de línguas, de origens, trajes e aparências. Juntaram-se na igreja
Nossa Senhora dos Remédios e juntos ouviram a homilia do padre Zoraier. Já
era noitinha quando apareceram Abbas e Cid Tannus, acompanhados por
duas cantoras de um cabaré da praça Pedro II. Não entraram na igreja, mas
foram fotografados ao lado dos noivos e participaram do jantar no Biblos, que
acabou numa festança embalada pela voz rouca de uma das cantoras e pelas
caixas de vinho francês ofertadas por Tannus.
Halim me mostrou o álbum do casamento, de onde tirou uma fotografia
que apreciava: ele, elegante, beijando a moça morena, ambos cercados por
orquídeas brancas: o beijo tão esperado, sem nenhum pudor, nenhuma
reverência às ratas de igreja e ao Zoraier: os lábios de Halim colados nos de
Zana, que, assustada, os olhos abertos, não esperava um beijo tão voraz no
altar. “Foi um beijo guloso e vingativo”, disse-me Halim. “Calei aquelas
matracas, e todos os gazais do Abbas estavam naquele beijo.”
Então era isso, assim: ela, Zana, mandava e desmandava na casa, na
empregada, nos filhos. Ele, paciência só, um Jó apaixonado e ardente,
aceitava, engolia cobras e lagartos, sempre fazendo as vontades dela, e,mesmo na velhice, mimando-a, “tocando o alaúde só para ela”, como
costumava dizer.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora