Eu ia conseguir isso: o diploma do Galinheiro dos Vândalos, minha
alforria. Sem que eu soubesse, Halim arrumava no meu quarto os manuais
que o Caçula desprezava e os muitos livros que Yaqub deixou ao viajar para
São Paulo, em janeiro de 1950.
A partida de Yaqub foi providencial para mim. Além dos livros usados,
ele deixou roupas velhas que anos depois me serviriam: três calças, várias
camisetas, duas camisas de gola puída, dois pares de sapato molambentos.
Quando ele viajou para São Paulo, eu tinha uns quatro anos de idade, mas a
roupa dele me esperou crescer e foi se ajustando ao meu corpo; as calças,
frouxas, pareciam sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram um pouco
apertados, entravam meio na marra nos pés: em parte por teimosia, e muito
por necessidade. O corpo é flexível. Inflexível foi o próprio Yaqub, que
enfrentou a resistência da mãe quando informou, no Natal de 1949, que ia
embora de Manaus. Disse isso à queima-roupa, como quem transforma em
ato uma ideia ruminada até a exaustão. Ninguém desconfiava de seus planos;
ele era evasivo nas respostas, esquivo até nas miudezas do cotidiano,
indiferente às diabruras do irmão, que soltava as rédeas no Galinheiro dos
Vândalos.
Yaqub quase nada revelava sobre sua vida no sul do Líbano. Rânia,
impaciente com o silêncio do irmão, com o pedaço de passado soterrado,
espicaçava-o com perguntas. Ele disfarçava. Ou dizia, lacônico: “Eu cuidava
do rebanho. Eu, o responsável pelo rebanho. Só isso”. Quando Rânia insistia,
ele se tornava áspero, quase intratável, contrariando a candura de gestos e a
altivez e aderindo talvez à rudeza que cultivara na aldeia. No entanto, havia
acontecido alguma coisa naquele tempo de pastor. Talvez Halim soubesse,
mas ninguém, nem mesmo Zana, arrancou do filho esse segredo. Não, de
Yaqub não saía nada. Ele se retraía, encasulava-se no momento certo. Às
vezes, ao sair do casulo, surpreendia.
Numa manhã de agosto de 1949, dia do aniversário dos gêmeos, o
Caçula pediu dinheiro e uma bicicleta nova. Halim deu a bicicleta, sabendo
que a esposa, às escondidas, enchia de moedas os bolsos do filho.
Yaqub recusou o dinheiro e a bicicleta. Pediu uma farda de gala para
desfilar no dia da Independência. Era o seu último ano no colégio dos padres e
agora ia desfilar como espadachim. Já era garboso à paisana, imagine de farda branca com botões dourados, a ombreira enfeitada de estrelas, o cinturão de
couro com fecho prateado, a polaina, a luva branca, a espada reluzente que
ele empunhou diante do espelho da sala. A mãe, com o olhar maravilhado,
não sabia se mirava o filho ou a imagem dele. Talvez tivesse olhos para mirar
os dois, ou os três, pois do alpendre o Caçula espiava a cena sentado na
bicicleta, a cara meio alesada com um sorriso esquisito, vá saber se de despeito
ou irrisão. Ele ignorou o desfile e a Independência. O pai preferiu aproveitar
em casa a quietude do feriado. Insistiu para que Zana ficasse com ele, deixasse
o filho desfilar e marchar à vontade, mas ela queria a emoção de ver Yaqub
fardado no centro da avenida Eduardo Ribeiro.
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Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
RomanceA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...