capítulo 8

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Ela havia mobiliado o quarto de Yaqub com uma cadeira austríaca, um
guarda-roupa de aguano e uma estante com os dezoito volumes de uma
enciclopédia que Halim comprara de um magistrado aposentado. Um vaso
com tajás enfeitava um canto do quarto perto da janela aberta para a rua.
Apoiado no parapeito, Yaqub olhava os passantes que subiam a rua na
direção da praça dos Remédios. Por ali circulavam carroças, um e outro carro,
cascalheiros tocando triângulos de ferro; na calçada, cadeiras em meio círculo
esperavam os moradores para a conversa do anoitecer; no batente das janelas,
tocos de velas iluminariam as noites da cidade sem luz. Fora assim durante os
anos da guerra: Manaus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante
dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz,
feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro. Zana
e Domingas acordavam de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a
patroa ia ao Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam a ferro,
preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim
comprava carne enlatada e farinha de trigo que os aviões norte-americanos
traziam para a Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido encalhado:
morim ou algodão esgarçado, renda encardida, essas coisas.
Conversavam em volta da mesa sobre isso: os anos da guerra, os
acampamentos miseráveis nos subúrbios de Manaus, onde se amontoavam
ex-seringueiros. Yaqub, calado, prestava atenção, tamborilava na madeira,
assentindo com a cabeça, feliz por entender as palavras, as frases, as histórias
contadas pela mãe, pelo pai, uma e outra observação de Rânia. Yaqub
entendia. As palavras, a sintaxe, a melodia da língua, tudo parecia ressurgir.
Ele bebia, comia e escutava, atento; entregava-se à reconciliação com a
família, mas certas palavras em português lhe faltavam. E sentiu a falta
quando os vizinhos vieram vê-lo. Yaqub foi beijado por Sultana, por Talib e
suas duas filhas, por Estelita Reinoso. Alguém disse que ele era mais altivo que
o irmão. Zana discordou: “Nada disso, são iguais, são gêmeos, têm o mesmo
corpo e o mesmo coração”. Ele sorriu, e dessa vez a hesitação da fala, o
esquecimento da língua e o receio de dizer uma asneira foram providenciais.
Desembrulhou os presentes, viu as roupas vistosas, o cinturão de couro, a
carteira com as iniciais prateadas. Manuseou a carteira e a enfiou no bolso da
calça que Halim lhe comprara no Rio.
“Coitado! Ya haram ash-shum!”, lamentou Zana. “Meu filho foi maltratado naquela aldeia.”

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora