Uma carta de Yaqub, pontual, chegava de São Paulo no fim de cada
mês. Zana fazia da leitura um ritual, lia como quem lê um salmo ou uma
surata; a dicção, emocionada, alternava com uma pausa, como se quisesse
escutar a voz do filho distante. Domingas se lembrava dessas sessões de
leituras. Eram tristes só em termos, porque Halim convidava os vizinhos e a
leitura era pretexto para um jantar festivo. Domingas percebia essa
artimanha de Halim. Sem festa, Zana ficaria deprimida, pensando no frio que
o filho sentia, na babugem que devia estar engolindo, coitadinho, na solidão
das noites num quarto úmido da Pensão Veneza, no centro de São Paulo. Com
poucas palavras, Yaqub pintava o ritmo de sua vida paulistana. A solidão e o
frio não o incomodavam; comentava os estudos, a perturbação da metrópole,
a seriedade e a devoção das pessoas ao trabalho. De vez em quando, ao
atravessar a praça da República, parava para contemplar a imensa seringueira.
Gostou de ver a árvore amazônica no centro de São Paulo, mas nunca mais a
mencionou.
As cartas iam revelando um fascínio por uma vida nova, o ritmo dos
desgarrados da família que vivem só. Agora não morava numa aldeia, mas
numa metrópole.
“Meu filho paulista”, brincava Zana, orgulhosa e preocupada ao mesmo
tempo. Temia que Yaqub nunca mais voltasse. Aos poucos, esse desgarrado foi
apurando sua capacidade de abstração. No sexto mês de vida paulistana
começou a lecionar matemática. Abreviou as cartas, dois ou três parágrafos
curtos, ou apenas um: mero sinal de vida e uma notícia que justificava a
carta. Assim, sem alarde, quase em surdina, o jovem professor Yaqub noticiou
seu ingresso na Universidade de São Paulo. Não ia ser matemático, ia ser engenheiro. Um politécnico, calculista de estruturas. Zana não entendeu
direito o significado da futura profissão do filho, mas engenheiro já bastava, e
era muito. Um doutor. Os pais mandaram-lhe dinheiro e um telegrama; ele
agradeceu as belas palavras e devolveu o dinheiro. Entenderam que o filho
nunca mais precisaria de um vintém. Mesmo se precisasse, não lhes pediria.
As cartas rareavam e as notícias de São Paulo pareciam sinais de um
outro mundo. O pouco que ele revelava não justificava o barulho que se fazia
em casa. Um bilhete com palavras vagas podia originar um festejo. Zana
aderiu à comemoração, que no início era mensal e depois foi rareando, de
modo que as poucas linhas enviadas por Yaqub passavam por Manaus como
um cometa de brilho pálido. Os acenos intermitentes da metrópole: o dia a dia
na Pensão Veneza, os cinemas da São João, os passeios de bonde, o burburinho
do viaduto do Chá e os sisudos mestres engravatados, venerados por Yaqub. Na
primeira foto que enviou, trajava paletó e gravata e tinha o ar posudo que
lembrava o espadachim no desfile da Independência.
“Como está diferente daquele montanhês que vi no Rio”, comentou
Halim, mirando a imagem do filho.
“O montanhês é o teu filho”, disse Zana. “O meu é outro, é esse futuro
doutor em frente do Teatro Municipal.”
Um outro Yaqub, usando a máscara do que havia de mais moderno no
outro lado do Brasil. Ele se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca
que se quer serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a
folhagem.
Por fora, era realmente outro. Por dentro, um mistério e tanto: um ser
calado que nunca pensava em voz alta.
Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas.
Numa das fotos, posou com a farda do Exército; outra vez uma espada, só que
agora a arma de dois gumes dava mais poder ao corpo do oficial da reserva.
Durante anos, essa imagem do galã fardado me impressionou. Um oficial do
Exército, e futuro engenheiro da Escola Politécnica...
Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, dormindo no
alpendre. O corpo participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia
da farra noturna. Durante a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser
imóvel, embrulhado na rede. No começo da tarde, rugia, faminto, bon vivant

VOCÊ ESTÁ LENDO
Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
RomanceA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...