e atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam as mãos e a silhueta dos
detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os
insultados: se os detentos ou os curumins que ajudavam as mães, tias ou avós
a retirar as roupas de um trançado de fios nas estacas das palafitas.
Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem.
Sentia raiva, de si próprio e do outro, quando via o braço do Caçula enroscado
no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia
raiva de sua impotência e tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula
desafiar três ou quatro moleques parrudos, aguentar o cerco e os socos deles e
revidar com fúria e palavrões. Yaqub se escondia, mas não deixava de admirar
a coragem de Omar. Queria brigar como ele, sentir o rosto inchado, o gosto de
sangue na boca, a ardência no lábio estriado, na testa e na cabeça cheia de
calombos; queria correr descalço, sem medo de queimar os pés nas ruas de
macadame aquecidas pelo sol forte da tarde, e saltar para pegar a linha ou a
rabiola de um papagaio que planava lentamente, em círculos, solto no espaço.
O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um acrobata e caía
de pé, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. Yaqub
recuava ao ver as mãos do irmão cheias de sangue, cortadas pelo vidro do
cerol.
Yaqub não era esse acrobata, não lambuzava as mãos com cerol, mas
bem que gostava de brincar e pular nos bailes de Carnaval no sobrado de
Sultana Benemou, onde o Caçula ficava para a festa dos adultos e varava a
noite com os foliões. Eles tinham treze anos, e, para Yaqub, era como se a
infância tivesse terminado no último baile no casarão dos Benemou. Naquela
noite ele nem sonhava que dois meses depois ia se separar dos pais, do país e
dessa paisagem que agora, sentado no banco da frente do Land Rover,
reanimava o rosto dele.
O baile dos jovens havia começado antes do anoitecer. Às dez horas os
adultos entraram fantasiados na sala do casarão, cantando, pulando e
enxotando a garotada. Yaqub quis ficar até meia-noite, porque uma sobrinha
dos Reinoso, a menina aloirada, corpo alto de moça, também ia brincar até a
manhã da Quarta-Feira de Cinzas. Seria a primeira noite de Lívia na festa dos
adultos, a primeira noite que ele, Yaqub, viu-a com os lábios pintados, os olhos
contornados por linhas pretas, as tranças salpicadas de lantejoulas que
brilhavam nos ombros bronzeados. Queria ficar para pular abraçado com ela,
sentir-se quase adulto como ela. Já pensava em se aproximar de Lívia quando
a voz de Zana ordenou: “Leva tua irmã para casa. Podes voltar depois”. Eles obedeceu. Acompanhou Rânia até o quarto, esperou-a dormir e voltou
correndo ao casarão dos Benemou. A sala fervilhava de foliões, e no meio das
tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e
logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele,
pertinho do rosto que admirava.
![](https://img.wattpad.com/cover/95820590-288-k898453.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
RomanceA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...