Capítulo 34

277 76 44
                                    

   Na segunda, a paz reina em Belo Horizonte. O céu nunca foi tão azul e, pela janela do táxi, percebo na falta de nuvens o quanto o dia será radiante. Em casa, tomo um banho daqueles de lavar a alma, não muito quente, mas elaborado. Curto a satisfação espalhada ao meu redor, hidrato o cabelo, esfolio cada centímetro de minha pele, libero o aroma dos sais de banho na ducha sem nunca me cansar de sustentar os lábios elevados em um glorioso sorriso. Seco-me na toalha mais macia e cheirosa, apreciando meu semblante contente no espelho ao repetir mentalmente os mínimos detalhes de ontem.

Ele. É. Muito. Legal!

Agora que a vergonha passou, meu corpo não se sustenta mais e, escorrega até o chão, se contorcendo em uma crise de gargalhadas.

***

Um determinado carregamento de turmalinas vindo do Marrocos ficou retido na alfândega do país de origem e Guilherme apareceu na casa de Marcel tarde da noite para resolver o problema. Minha surpresa ao vê-lo só não foi maior, porque seu constrangimento ao me ver entrar, abruptamente, no escritório usando somente uma toalha amarrada ao cabelo e um desproporcional roupão azul marinho foi muito maior. Guilherme ficou tão pálido que achei que fosse desmaiar. Mas como eu poderia saber da presença de mais alguém naquele apartamento estando no banho? Tentei sair da sala tão rápido quanto entrei, mas Marcel encarou a saia justa se divertindo em uma bem aplicada lição de diplomacia. Sem afrouxar os dedos do meu punho direito, ligou para alguém e deixou Gui no escritório, se empenhando no negócio embaraçoso da liberação da valiosa carga de pedras preciosas, enquanto nós fomos resolver o meu embaraçado estado. Eu não estava de frescura, a aflição de não achar um absorvente sequer fez o calor úmido esquentar minhas coxas.

— Seja minha parceira, por favor. Entre e escute seu coração — disse Marcel abrindo a porta do paraíso —, sem ressalvas. Abra portas, gavetas, caixas... Tenho certeza que encontrará o que precisa em algum lugar.

— Marcel, não é correto revirar...

— Não é correto você ir embora quando quer ficar — ele interrompeu minha aflição crescente segurando meu rosto entre suas mãos — você não vai a lugar algum, a menos que tenha mudado de ideia. — Balancei a cabeça afirmando minha vontade de ficar. — Então, relaxa, pelo amor de Deus! Nós queremos dormir juntos, ficaremos acordados somente se você estiver à vontade, e não saia correndo, por favor... — Ele olhou de rabo de olho para uma quase, quase imperceptível, mas para um bom entendedor a manchinha vermelha escura estava bem ali no roupão. — Ser saudável é a coisa mais importante desse mundo, Stella.

Pena que eu não era um avestruz e o concreto do vigésimo segundo andar não me permitia enterrar a cabeça no chão, porque eu fiquei roxa de vergonha. Levei as mãos ao rosto e o enterrei no peito de Marcel, pedindo aos céus que eu fosse abduzida para bem longe.

— Stella, olha para mim. — Ele apoiou uma mão de cada lado da minha cabeça enquanto eu ainda procurava por um buraco negro em seu peito, rezando para ser sugada por ele. — Stella, você é uma mulher saudável e isso é muito bom!

Não tive coragem de encará-lo e ele passou a acariciar meu cabelo, eu esperei e esperei e esperei... Eu bem poderia passar o resto da vida escondida em seu peito, o cheiro era bom o bastante, mas ele não poderia ficar ali por muito mais tempo, Gui o esperava, as malditas pedras o esperavam, o mundo continuava rodando sem se preocupar com meu vexame... Ciente de que em algum momento teria de reagir, prendi a respiração.

— Isso é bom? — murmurei, me afastando, desviando os olhos para dentro do closet. — Gosto da sua colocação, mas não é correto revirar o closet da Marina. Já usei o banheiro social e seu roupão... — Apertei o roupão ao meu redor, uma coxa contra a outra, implorando para esse que ato interrompesse o curso da natureza. — Preciso ir embora! Eu mataria meu irmão se ele abrisse meu quarto desse jeito para qualquer uma.

Marcel me puxou pela mão e nos colocou dentro do closet. Sem forçar um contato visual, me abraçou.

— Serei um cara morto se Marina souber que deixei a pessoa mais especial que já conheci sem a devida atenção. — Seu timbre melodioso ecoou lá, bem lá no fundinho do que restava de dignidade em mim, massageando meu corroído ego. Ganhei um beijo na testa antes dele abrir duas das inúmeras gavetas da cômoda centrada no closet. Ele pegou um analgésico em uma caixinha, acho eu, de cristal. — Tem água filtrada no banheiro. Fique à vontade. — Ganhei outro beijo, na boca dessa vez, ele piscou e se foi.

Especial?

Continuei parada no meio do imenso aposento olhando para o meu reflexo no, também imenso, espelho.

Uma vez conquistador, sempre conquistador!

Ufa!

Eu não conseguiria passar pela porta da sala sem interrompê-los mais uma vez. Ponderei depois de acalmar meu ânimo. Joguei o comprimido na boca, o engoli sem água mesmo e girei sobre meu próprio eixo me sentindo dentro de um conto de fadas da era moderna. Era como se eu estivesse dentro do mais sofisticado shopping de São Paulo, o luxuoso Cidade Jardim, tendo todas as lojas abertas exclusivamente para mim. Todo o closet fora construído em branco, os detalhes dos puxadores e da poltrona em bege me deram a sensação de aconchego. Encarei os cabides, próximo a porta, eles sustentavam maravilhosos vestidos da Chanel, Gucci e não sei lá mais qual marca famosa. Caminhei ao lado oposto onde perfumes de todas as partes do mundo estavam abaixo das prateleiras de roupas de cama e banho. Ao lado da janela fechada por longas cortinas também bege, sapatos das mais variadas cores, modelos e marcas estavam cuidadosamente expostos. Tonteei observando dinamicamente acessórios, lenços, cardigans, chapéus e bolsas... Marcel, você tem certeza que eu posso fazer o que bem entender? Eu ouvi isso, não ouvi? Se Marina não gostar, ela que brigue com você.

Minha vontade era experimentar todos os vestidos, calçar todos os sapatos e conhecer um a um, o cheiro dos maravilhosos frascos cuidadosamente arrumados, mas engoli o faniquito, voltei a atenção às minhas genuínas necessidades depois de sentir mais uma contração entre as coxas. Localizei os absorventes, depois de uma pequena expedição pelos armários, no banheiro, junto com roupas íntimas novas em uma caixa gravado LA Perla em alto relevo, um agasalho de ginástica Adidas, mais ou menos do meu tamanho porque obviamente ficou justo, e um par de meias na gaveta aberta por Marcel. Tomei outro banho e enrolei o roupão no saco plástico do agasalho de ginástica para levá-lo para a lavanderia. Moralmente recomposta, me sentei na confortável poltrona cuidadosamente colocada no centro do imenso aposento ao lado da cômoda. Encarei os pingentes do lindo lustre de cristal. Talvez eu não devesse mesmo revirar o que não é meu, pensei imaginando como seria ter uma vida daquelas. Olhei ao redor. Será que eu conseguiria viver uma vida parecida com a de Marina Junqueira? É tanto luxo, glamour, muito especulação, muitas falsas informações espalhadas, muitos paparazzis, muitos assédios... Arrepiei cem por cento do corpo ao receber o gosto azedo da bile na boca. Definitivamente, essa vida não é para mim! Corri para fora do closet e tranquei sua porta. O quarto era algo mais perto do que eu estava acostumada, mesmo assim, não me sentei, abandonei a especulação para seguir meus instintos, resolvi ser parceiras dos trabalhadores em hora extra. Sem revirar mais nada, levei para o escritório duas xícaras de café expresso preparado na máquina existente em uma das salas. Acabei dormindo, por boa parte da noite, sozinha sobre a gigante cama de uma das top models mais famosas do mundo. Dormi menos tempo que o desejado nos braços de Marcel, que se juntou a mim sem minha percepção. E eu? Deixei-o dormindo, cedo pela manhã, quando fui trabalhar, ao lado de um breve bilhete.

"Obrigada por existir."

Quatro Semanas ( Degustação. Disponível na Amazon)Onde histórias criam vida. Descubra agora