Proteger e Servir

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AAYRINE


- Tome isso, seu humano nojento! E mais isso!

Acocorados num canto da clareira, alguns monstrinhos felinos gracejavam, cochichando entre si, apontando para um Boboneco fixado no centro do chão enregelante. O tristonho estufado recebia golpe após golpe sobre sua superfície macia, atingido várias vezes por meu diminuto espadim de madeira.

- Desista, Aayrine! - praguejou um dos espectadores, rindo – se não dá conta de um Boboneco, nem precisa entrar na Guarda Real!

Interrompi o assalto de meu espadim amadeirado.

Houve um mínimo movimento irritado de minha cauda, antes que a garota decidisse confrontar os rostos risonhos dos colegas.

Agora com doze anos, eu havia crescido bastante, num período relativamente muito curto de tempo. Meus minúsculos chifres retos haviam aumentado de tamanho, e estavam começando a se espiralar para trás. Embora eu ainda fosse relativamente rechonchuda, havia perdido o corpo infantil, tornando-me fisicamente mais forte e robusta – fruto de meus treinamentos isolados em casa.

- Desistir? - ergui uma sobrancelha – se um dia Undyne desistir de nos libertar... eu garanto que desistirei de entrar para a Guarda Real.

- Então já era – brincou Kaz, o jovem gato negro, único garoto do pequeno grupo – o fim dos tempos chegará, e Aayrine ainda está batendo nesse Boboneco.

O som de algo sendo cortado no ar interrompeu Kaz. Logo em seguida, o monstrinho felino foi alvejado pela cabeça decapitada do Boboneco, caindo para trás do tronco onde se encontrava sentado. As demais meninas desataram a rir, vendo-o se reerguer lentamente, fechando sua expressão para mim.

- Se não quiser que eu faça o mesmo com a sua cabeça – ameacei, irritada – é melhor ficar na sua, Kaz.

Kaz deu de ombros. Embora fosse quase meio palmo maior do que eu, sabia provavelmente que eu sabia mesmo fazer alguns estragos razoáveis.

- Que seja.

Curiosa, percebi a expressão de Kaz repentinamente se anuviar de assombro. Os olhos do gato se arregalaram, e as outras meninas demonstraram igual perplexidade, retraindo-se de choque.

Eu já estava ofegante e trêmula bem antes de sentir a presença de alguém em minhas costas.

A sombra que se impôs diante dela me era extraordinariamente familiar.

- Foi um corte impressionante, pirralha – grunhiu, satisfeita, uma voz potente atrás de mim.

Meus joelhos começaram a tremer de euforia. Sentindo um arrepio extasiado me dominar, virei-me lentamente, sentindo meu coração saltar dentro do peito.

Por fim, ergui o olhar, ficando defronte a líder da Guarda Real.

- O-obrigada... Undyne – gaguejei, sem conseguir acreditar que ela, a própria capitã da guarda do rei, estava ali diante de mim – você v-viu?

Undyne sorriu, expondo seus dentes afiados, lançando-me uma piscadela com o único olho descoberto. Fremindo de animação, a vi ajoelhar-se em uma das pernas, equiparando-se a mim em altura.

- Vi sim, garota – riu-se a monstra, bagunçando-me os cabelos louros – foi um golpe e tanto... - murmurou consigo mesma – faltou um pouco mais de rapidez na decapitação. Mas seu ataque foi muito bom.

Ligeiramente desapontada comigo mesma, assenti, desviando os olhos de minha adorada ídola.

- Tem razão – suspirei, decepcionada – sou muito lenta. Se fosse um humano armado, já teria me derrotado....

Eu, inocente, nem desconfiava naquele momento.

O fato era que a capitã não havia acabado de chegar à clareira. Sequer era primeira vez que a guerreira nos observava treinando.

E Undyne viera ali com uma decisão.

Observamos Undyne recolher a cabeça do Boboneco, locomovendo-o de um lado para o outro entre os dedos escamosos, com uma expressão pensativa.

- Bem... sempre há margem para melhoras, não é? - sugeriu, sorrindo – que tal vocês evoluírem essas técnicas no castelo?

Undyne teve que virar a cabeça quando sufoquei um grito.

- Como é? - as orelhas de Kaz se ergueram – a senhorita está dizendo...?

Eu sentia meu estômago rodar dentro de mim. Parecia que eu ia explodir de felicidade e perplexidade.

- Sim – era visível que nosso espanto divertia em muito a monstra marinha – vou treiná-los adequadamente. A Guarda Real anda desfalcada desde que os velhos guardas se aposentaram. Precisamos de jovens talentosos e fortes para proteger nosso povo – rosnou de modo persuasivo – o que me dizem, crianças?

Não houve nenhuma hesitação da minha parte.

Assim que consegui recuperar a capacidade de falar, avancei, sendo a primeira a bater o pé convictamente contra a neve.

- Estou pronta, Undyne! - prontifiquei-me, resfolegando de êxtase – quero proteger nosso povo, e servir nosso rei!

Undyne teve de sufocar o riso quando eu apliquei um doloroso golpe de cotovelo na omoplata de Kaz.

- É – o menino concordou, fazendo uma careta de dor, antes de se levantar – estou pronto também, Undyne!

As garotas cochicharam animadas, também erguendo-se, todas assentindo em concordância.

- Excelente – riu-se em aprovação - falarei com seus pais. Melhor voltarem para suas casas... os avisem que estarei lá mais tarde.

Kaz praticamente arrastou as outras monstrinhas gatas na direção da estrada de neve, correndo em direção às casinhas do vilarejo.

Antes que eu pudesse segui-los, porém, senti a mão de Undyne segurar meu ombro gentilmente.

Voltei a encará-la. Agora que estava novamente de pé, percebia o quanto era pequena em comparação com ela.

- Você é filha de Mistrel, não é? - indagou – seu pai... foi Terso Nacabi.

Enrijeci.

- Sim – disse, cabisbaixa.

- Sua mãe cuidou de mim quando pequena – comentou, ao que arfei de surpresa – quando chegamos ao subterrâneo, eu estava sozinha. A única sobrevivente da minha família... e Mistrel me acolheu durante a caravana – seu único olho pareceu se fixar em algum ponto distante, fora daquela realidade – seu pai foi um grande guerreiro. Ele e Gerson... foram toda a inspiração que eu precisava.

Sorri fracamente, novamente sentindo no peito aquela dor que surgia quando tentava me recordar do pai que eu jamais havia conhecido.

- Sim – concordei – papai me inspirou também – suspirei – só quero... honrar o nome dele.

Undyne segurou minha mão.

O gesto, suave e terno, parecia quase deslocado em suas mãos de lutadora.

- E você honrará, Aayrine – prometeu – farei de você uma guerreira.

E Undyne cumpriria esta promessa.

Mas não fez de mim apenas uma guerreira.

A partir dali, a capitã da Guarda Real seria a minha melhor amiga.

O Espadim e a Manopla - Uma História de UndertaleOnde histórias criam vida. Descubra agora