O Oitavo Humano

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AAYRINE  

Alguns dias haviam se passado, desde o encontro com Nitch na gruta.  

Em determinada manhã, por algum motivo, durante nosso lanche rápido de ketchup pela manhã, Sans parecia anormalmente nervoso e distraído.  

- Tudo bem, saco de osso? - perguntei em tom de brincadeira, sem ocultar o tom preocupado em minha voz, enquanto mordiscava minha embalagem.  

Sans colocou as mãos esqueléticas dentro do bolso, soltando um muxoxo.  

- Heh – inclinou o crânio para mim - claro… por que não estaria?  

Ah... eu reconhecia aquele tom deprimido e pensativo. Estreitei o olhar.  

- Andou brigando com a sua amiga das Ruínas?  

- Que? Não… - lançou-me uma pupila branca, arregalada de perplexidade – nós continuamos nos dando… muito bem. Só… - balançou as omoplatas – tivemos uma conversa… diferente – ele ergueu uma falange, antes que eu o interrompesse – e bem mais particular.  

Ergui a sobrancelha.

- Ah… não vai me contar. Certo.  

Ouvi o som de algo chacoalhando. Só pude imaginar que havia sido sua mandíbula rilhando contra o crânio, numa tentativa de reprimir um riso exasperado.

- Ela me fez guardar segredo, garota.  

- Ah... eu também não queria saber mesmo – sacudi os ombros, fingindo intensa mágoa.  

Sans riu.  

- Qual é, Nacabi – ele ergueu os indicadores na minha direção – em questão de guardar segredo… eu realmente sou cabeça-dura.  

Fechei os olhos e tentei contar até dez.  

Não consegui.  

- Às vezes tenho vontade de enfiar meu espadim no teu cóccix, Sans.  

- Falando em enfiar coisas onde não se deve – por alguma razão, aquele comentário fez meu rosto esquentar de imediato – como vão as coisas com seu namorado?  

O esqueleto nem se encolheu quando taquei o sachê mais próximo em seu rosto, encharcando seu crânio de molho vermelho.  

Ficou maluco, cara? - exclamei – que namorado??

Vi-o passar a mão em cima da cabeça, baixando-a, e começando a lamber os dedos com o ketchup que havia limpado, com uma expressão de absoluta serenidade.

- Ora essa… - Sans decididamente reprimia o gracejo naquele momento - o filho secreto de Asgore… o cabrito-temmie musculoso e bonitão, Nitch Dreemurr Buster.  

Meu rosto, já corado, ficou ainda mais ruborizado.  

- Ele não é meu namorado, seu idiota – por que diabos minha voz havia ficado tão trêmula de repente? - eu e o Nitch somos apenas amigos!

- Ah… claro – ele me encarou, nem um pouco convencido, de uma maneira zombeteira – e eu sou o revenant mais sério e formal do Underground. Vai mesmo ter coragem de me dizer isso, após ter cuidado do garoto naquela noite... e depois daquele encontro? Vou te contar, Rine... - lançou-me uma piscadela - amar e não admitir deve ser osso duro de roer.

Ele se teleportou para longe dos espadins que conjurei abaixo dele, gargalhando, equilibrando-se desengonçadamente no parapeito da minha varanda.  

- Agora entendo o que Papyrus diz sobre suas piadas – grunhi, comichando de vontade de treinar meu arremesso, e fazer tiro ao alvo naquele esqueleto abusado.

- E o que ele diz? - brincou – que as minhas piadas são absolutamente sansacionais?  

Pronto.  

Foi o suficiente para me transformar na encarnação do demônio.

- AHHHH! - berrei, encolerizada - SOME DA MINHA FRENTE, SANS!  

Com um último teleporte, Sans gargalhou, desaparecendo no ar e finalmente sumindo de vista.  

Sacudi a cabeça, atordoada e irritada. Por mais que Sans fosse meu amigo, haviam horas em que era dificil conseguir aturá-lo.

Não fosse por consideração e carinho por Papyrus, já tinha afiado minhas lâminas naquela ossada há um bom tempo. 

- Ei, Nacabi!  

Virei-me, vendo Dogamy e Dogaressa acenando para mim à alguns metros adiante, brandindo seus machados ao lado do corpo.

- Dogamy! Dogaressa! - vendo uma deixa para esquecer o que havia acabado de acontecer, aproximei-me dos dois, ajeitando as ombreiras de minha armadura – já estão indo para a patrulha?  

Sorri para eles, que aparentavam uma felicidade quase contagiante. Há menos de uma semana, ambos haviam finalmente se casado - era visível o quanto ainda estavam eufóricos e apaixonados.

O que também me lembrava desagradavelmente da insinuação tola de Sans, á alguns minutos atrás. Pisquei, refreando um guincho exasperado.                                         

- Sim… - Dogamy assentiu - vamos fazer vigília no nosso posto antigo, ao longo do caminho dos antigos carvalhos – sua voz baixou um tom – ouvimos dizer… que outro humano caiu no subsolo.  

Senti-me enregelar de choque.  

Minhas orelhas se eriçaram.  

- Um humano?  

Seria o oitavo a cair. E a sétima alma que coletaríamos. A última que o rei necessitava para nos libertar.  

Apenas mais uma.  

Enrijeci.  

- Sabe o que isso significa, não é? - Dogaressa sussurrou, retraindo o focinho de ansiedade.  

Sibilei.  

- Claro que sei – resfoleguei, contraindo os punhos sobre a empunhadura do espadim, que jazia embainhada em meu cinturão – é o que todos nós temos esperado durante anos – meneei a cabeça de forma irredutível – a Guarda Real se preparou para este dia… - grunhi - e não podemos hesitar agora – enfatizei, encarando Dogamy – o rei já foi comunicado?  

- Sim… - ele concordou – e Undyne… também foi avisada. Estaremos todos a postos – inclinou o rosto, fazendo suas orelhas felpudas esvoaçarem – se este humano cruzar nosso caminho… poderá se considerar morto.  

Assenti em aprovação.

- Não podemos perdê-lo de vista. Vamos nos espalhar por Snowdin. Distribuam-se pelas passagens da área. Se realmente for verdade… cedo ou tarde iremos encontrá-lo – vinquei a testa – estarei de tocaia... defronte á antiga ponte do vilarejo. Avisem se conseguirem algum resultado.  

Ambos acenaram em concordância, despedindo-se com uma vênia e disparando rapidamente em direção à estrada nevada dos carvalhos.  

Não me demorei, dando a volta por trás da cabana, e apanhando um atalho em direção à velha ponte de madeira.  

Nós estávamos mais perto da liberdade do que nunca.  

A possibilidade de dar cabo de toda aquela situação ribombava dentro de mim, alimentada ferozmente pelo desejo de vingança e justiça.  

Se eu realmente o encontrasse, teria o maior prazer em arrancar sua alma. Eu o espreitaria das sombras. Eu queria - e iria - causar a destruição daquela ameaça inexplicável.

Eu não tinha dúvidas.

Aquele humano teria o seu fim sob o gume de minha espada.



O Espadim e a Manopla - Uma História de UndertaleOnde histórias criam vida. Descubra agora