Fogos e Incêndios

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AAYRINE


Olhei-me no espelho da casa de Shyren, sem acreditar no que eu via.

Por mais que minha pelagem encobrisse, sabia que meu rosto se encontrava num intenso rubor. Meu peito subia e descia de maneira quase desesperadora, como se eu estivesse prestes a sofrer um colapso nervoso. Meus olhos rubros tremiam, dilatados de choque e ansiedade.

E meu coração – aquele pobre órgão sobrecarregado – pulsava e batia em irracional velocidade. Me surpreendia de ainda não ter tido um ataque cardíaco.

Eu não sabia o que me perturbava mais – a perspectiva de ter acabado de fugir do cárcere, de me encontrar no impensável papel de fugitiva…

Ou de Nitch ter me beijado.

Pousei as palmas das mãos sobre a superfície vítrea, sacudindo a cabeça.

Naquele momento - encarando a realidade inegável que o reflexo esfregava em minha cara – percebi finalmente algo que, inconscientemente, havia tentado esconder de mim mesma todo aquele tempo.

Pelo visto, Nitch Buster havia feito o impossível. Havia tirado meu chão. Me deixado fraca e indefesa, completamente vulnerável.

E, ao contrário do que se esperaria, aquela sensação era estranhamente maravilhosa.

Uma voz trêmula e cantarolada soou atrás de mim.

- Ele te ama, sabia?

Virei com tamanha violência que meus chifres se engancharam no suporte do espelho, quase me fazendo tropeçar e meter o focinho no chão.

Ofegante, inclinei a cabeça, tirando-os cuidadosamente do gancho do suporte. A situação toda definitivamente teria sido engraçada, se eu não estivesse tão tensa àquela altura..

- Pirou de vez, Shyren?

A monstra marinha deu uma risadinha tristonha.

- Ah, Aayrine. Você nunca percebeu como ele te olha? - suspirou – eu não vejo tanta ternura no olhar de alguém… - seu tom de voz baixou – desde que minha irmã foi embora.

Mordi o lábio, condoída.

- Shyren…

Ela balançou a cabeça flutuante, sorrindo fracamente.

- É sério… Nitch gosta muito de você – deu de ombros, baixando o olhar – ele sempre foi tão solitário… tão amargurado. Eu o via andar por aqui… contemplando o teto deste subsolo… sempre tão perdido. Dava para ver o vazio dentro de sua alma, sabe…. - acrescentou, num tom mais baixo - mas isso mudou… depois que ele te conheceu. Agora… ele tem esperança.

Baixei minhas orelhas, vincando as sobrancelhas.

Eu sabia que Shyren estava certa.

Mas pensar em Nitch apaixonado por mim… ainda era muito extraordinário para eu simplesmente concordar racionalmente.

- Isso… não é importante agora – falei roucamente, de maneira pouco convincente – o humano… - enfatizei – o que está indo em direção ao castelo… sabe onde ele está agora?

- Sim – ela assentiu – ele já passou daqui há algum tempo… da última vez que ouvi… estava prestes a entrar na passagem de Hotland. Me disseram que Undyne o encontrou lá.

Senti meu peito apertar.

- Sabe se eles… chegaram a lutar?

- Não… já faz horas desde que Aaron me falou sobre isso… não sei o que aconteceu.

Abracei meu próprio corpo.

- Se eu tentar reencontrar Undyne… ela pode tentar me impedir outra vez – murmurei comigo mesma – sabe de alguém… que poderia me encobrir se eu tentar ir até a casa dela? Alguém que não vai me entregar ao rei?

Shyren fitou-me veementemente.

- Olhe, Rine… quase todos os monstros de Waterfall se encontraram com esse humano… eu mesma o enfrentei. Mas ele é… bom. Não há maldade dentro dele – piscou, pensativa – ninguém que o esteja ajudando… pelo menos aqui nas cachoeiras… seria julgado como traidor – seu olhar vagou até a janela de sua casa – se quiser, posso chamar Aaron para acompanhá-la.

- Seria de grande ajuda – concordei – obrigada… por me acolher aqui, Shyren…

Ela sorriu – um sorriso um tanto quanto mais feliz desta vez.

- Não há de que.




Aaron era um cavalo sereiano grandalhão e bem-humorado, com o qual eu havia acostumado a treinar várias quedas de braço quando mais jovem. Shyren havia acertado em cheio ao chamá-lo para me acompanhar até a casa de Undyne.

- Então… está tentando ajudar o garotinho, não é?

- Sim – assenti, sorrindo de lado.

- Faz bem – Aaron riu-se – aquele pequeno humano sabe flexionar que é uma beleza. Não dá pra deixar o rei destruir alguém com esse potencial pra musculação.

Segurei o riso, imaginando aquele rapazinho tentando acompanhar as exageradas flexões de Aaron com seus bracinhos finos.

Porém, enquanto caminhávamos pelas cavernas, senti um cheiro estranho invadindo o ar - um odor forte e ocre de algo queimando.

- Está sentindo este cheiro?

Para meu choque absoluto, vislumbrei alguns vestígios de fumaça emergindo de uma das passagens adiante.

A passagem que levava à casa de Undyne.

Vi Aaron paralisar, aturdido – tempo bastante para eu decidir avançar sozinha, desesperada, indo em direção à pequena construção de formato pisciano.

Quando cheguei ali, ofegante, senti o coração parar.

A residência estava incinerada, como se ali tivesse ocorrido um grave incêndio. Algumas chamas ainda dançavam dentro do interior da casa, fazendo com que as duas janelas, em forma de olhos, parecessem encarar o jardim com absoluta fúria – e literal incandescência.

O que diabos havia acontecido?

Undyne nunca teria deixado sua casa sofrer tal avaria.

Por um momento desesperador, pensei que o garoto tivesse feito aquilo.

E, logo em seguida, me senti arrependida de supor algo assim – eu já havia confirmado sua bondade, e sabia que jamais teria sido capaz de coisa tão terrível.

De longe, Aaron começou a vir em minha direção, igualmente pasmo com o que estava vendo ali adiante.

- O que aconteceu aqui?

Minhas mãos se fecharam em punhos. Tentei ouvir ou rastrear qualquer movimento ou som suspeito nos arredores, imaginando se o causador daquele acidente ainda estava ali.

- Nacabi.

Ouvir aquela voz fez toda a pelagem do meu corpo se eriçar. Era impossível não reconhecer o tom imperativo, depois de todos aqueles anos.

Virei-me lentamente, olhando de soslaio para a figura que se projetou atrás de mim.

Braços cruzados, expressão indecifrável. O único olho me sondando intensamente, como se qualquer piscada fosse fazer com que eu desaparecesse de sua visão.

Eu não precisava mais rastrear Undyne.

Por que ela já havia me encontrado.






O Espadim e a Manopla - Uma História de UndertaleOnde histórias criam vida. Descubra agora