O Espadim e a Manopla - Uma História de Undertale

Traições

NITCH

Quase caí do sofá de susto quando o celular tocou.

Com o impulso que dei pra me levantar, meti a cabeça embaixo do criado-mudo, soltando um ganido de dor. Me levantei lentamente, atendendo a ligação.

- Alô? - guinchei, massageando a cabeça.

- Buster.

Minhas orelhas se arrepiaram,

A voz de Undyne estava séria e inflexível – algo incomum, considerando suas habituais ligações para mim, onde costumava ser cordial e amigável.

Era a voz autoritária da capitã da Guarda Real.

- Undyne… - ofeguei – o que houve?

- Nada com que tenha que se preocupar agora, Nitch – ela cortou-me, rascante – talvez eu precise de sua escolta para… resolver um problema.

- Claro – concordei de imediato, embora ainda estivesse confuso – interceptação de alvos?

- De certa forma – seu tome estava estranhamente evasivo – captura e neutralização. Acho que teremos problemas… com uma provável traição.

Minha nuca se arrepiou.

- Traição? - exclamei, escandalizado - de quem?

Ouvi-a grunhir do outro lado da linha.

- Há um novo humano aqui no subsolo – Undyne mal me deu tempo de absorver a notícia avassaladora, prosseguindo  - e um de nós está planejando ajudá-lo a fugir em Waterfall.

Suspirei.

- E por que um guerreiro da Guarda Real faria isso? - perguntei, mais para mim mesmo do que para ela – ainda estou no castelo… Aayrine não poderia…?

Houve um silêncio prolongado, como se Undyne tivesse fechado completamente as guelras, segurando o fôlego pra não gritar de fúria.

Senti um soco na boca do estômago.

Aayrine.

Undyne queria capturar Aayrine.

Sacudi a cabeça, atordoado.

Não… não era possível.

Aayrine odiava a humanidade, tanto quanto qualquer outro monstro da Guarda Real. Por que diabos ela teria resolvido repentinamente ajudar um humano a fugir dos próprios companheiros de armas?

- Acho que entende por que solicitei seu auxílio agora, Buster. Se eu tentar ir atrás dela… Aayrine fugirá… e tornará tudo ainda mais complicado – Undyne voltou a falar – eu sei… não estou nada feliz por isso ter que acontecer. Mas Nacabi… está cometendo um grande erro. Ela está fora de si… e precisa ser impedida… compreende? - completou, de maneira enfática – é para o próprio bem dela. E para o nosso também.

- Undyne… - franzi o cenho, atônito - eu…

Ela nem me deixou completar meu parco e lento raciocínio.

- Enquanto faz isso, irei atrás desse humano. Tenho certeza que Aayrine não está fazendo por mal. Ele realmente… a enganou. Eu garanto que resolveremos isso quando tudo terminar - ela voltou a frisar hostilmente – mas por hora… precisa pará-la, Nitch – completou – e isso não é uma sugestão. É uma ordem.

Não tive chance de contestar – Undyne havia encerrado a ligação logo em seguida.

Eu estava sentindo uma profunda vontade de vomitar, enquanto aguardava desoladamente na divisa entre Snowdin e Waterfall.

Algo me dizia que aquilo era errado.

Por que infernos Aayrine havia repentinamente mudado de lado, e resolvido auxiliar um humano? Logo ela, que sempre havia demonstrado uma ferrenha oposição à qualquer manifestação humana que existisse no interior do subsolo?

Aquilo não fazia sentido algum.

Agora, meu coração se retorcia de angústia, tristeza e remorso, pensando no que estava prestes a fazer com minha melhor amiga.

E Karin, aquela pobre monstra martirizada e bondosa, ainda esperava que eu sentisse alguma esperança…

- Nitch?

Virei-me, vendo Aayrine se aproximar, com um meio sorriso tímido no rosto.

Aquilo pareceu me destruir por um momento.

- Aayrine… - sussurrei, sentindo minhas orelhas superiores e encolherem levemente para trás, refreando um arquejo.

- Recebi sua mensagem – sacudiu o celular na mão – sorte sua que saí com o celular de casa, ou não a teria visto.

Aquilo seria mais difícil do que eu havia pensado.

- É… eu precisava… falar com você… - murmurei.

- Ainda bem que me ligou logo – ela mordeu o lábio – eu estava indo… resolver um assunto… aqui em Waterfall.

Eu sei, pensei, desanimado.

- Ah… entendo.

Eu estava sentindo uma imensa repulsa de mim mesmo.

- Você está bem, Nitch? - ela pareceu ler o desespero em meu olhar – você parece… aflito – guinchei quando ela chegou mais perto, tomando minhas mãos nas dela – o que aconteceu?

Tão fácil… ela estava vulnerável demais, completamente entregue à ternura, ao carinho e à preocupação que tinha por mim. Sua confiança em mim, tão cega e fiel, não permitia que suspeitasse de nada.

Como eu estava conseguindo ser tão cruel?

- Eu… eu… sinto muito, Rine… - sacudi a cabeça.

- Ei… calma, Nitch – para meu choque maior, ela pousou a mão sobre meu rosto, afagando-o gentilmente – me conte o que houve…

Uma risada irônica ecoou atrás da neblina.

- Uma traição, Nacabi… foi o que aconteceu.

Aayrine deu meia-volta, encarando a silhueta de Drago, que emergiu juntamente de Remo, deixando o limítrofe de Snowdin, ambos aproximando-se cautelosamente de nós.

Ela recuou, esbarrando as costas contra mim.

Aturdida, guinchou de dor quando tentou recolher os braços, olhando aterrorizada para as algemas que agora estavam em seus pulsos, imobilizando suas mãos para trás.

Sua cabeça girou em minha direção, e seus olhos me fitaram

Lacrimejantes. Cheios de mágoa.

Suas palavras seguintes foram como uma facada em meu peito.

- Nitch… - soluçou, o focinho rilhando de encolerizado suplício  – por que?

Meus joelhos bambearam por um momento.

- Não o culpe, Aayrine – Drago resfolegou, sacudindo o elmo – não fomos nós que viramos as costas para o nosso próprio povo – sibilou, me encarando – leve-a para o cárcere de Waterfall, Nitch. Undyne te designou para vigiá-la.

- Por favor… - ela se inclinou, súplice, sacudindo suas orelhas desesperadamente, tal e qual um animal em intensa agonia – vocês não entendem...

Sem outra opção - sentindo o arrependimento e a tristeza me assolarem – comecei a arrastar Aayrine para dentro de Waterfall, distanciando-a da presença dos dois guardas.

- Eu sinto muito – grunhi baixo – por favor… não torne as coisas mais difíceis…

O silêncio de Aayrine – que prolongou-se ao longo de todo o caminho em que fui forçado a escoltá-la - me machucou mais do que se ela tivesse reagido.