Dilema

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AAYRINE


A criança observou-me recolher o espadim nas mãos, completamente imóvel e insegura. Acompanhava, esgazeada, minhas presas rilharem no esgar da mandíbula, prevendo alguma reação hostil minha.

Porém, algo mais surpreendente aconteceu.

Num impulso surpreendente, ajoelhei-me diante dele, fitando o pequeno humano nos olhos.

Pela primeira vez, eu estava começando a perceber o que havia de tão incomum naquele garotinho.

- Por que me salvou? - minha voz era pouco mais que um sussurro. Eu estava realmente aturdida e intrigada.

Ele sorriu um pouco, sem graça.

- Não podia deixar você morrer. Eu disse que não queria lutar – suspirou, erguendo a mãozinha em minha direção.

Houve um momento de prolongada hesitação.

E então, contra tudo que eu havia decidido arquitetar naquele momento, decidi acolher-lhe a mão na minha.

- Obrigada – falei, ainda observando-o, com indescritível perplexidade.

Ainda não entendia o que havia acabado de acontecer. Havia perdido a chance de roubar a alma de um humano – a última alma, a única que ainda restava para que pudéssemos libertar meu povo.

E, no entanto, eu não se sentia remotamente derrotada.

Tinha também sido salva por ele, o que só me deixava ainda mais confusa.

- Eu só quero ser seu amigo – ele acrescentou, esperançoso.

Balancei a cabeça comigo mesma, espantada. Eu, Aayrine, braço direito de Undyne, a maior odiadora da raça humana… agora prostrada, rendendo-me diante de uma mera criança.

Uma sensação queimante pareceu acender-se dentro de mim. Um tipo de sentimento forte, que pareceu roubar-me completamente o ar.

Demorei para descobrir o que era.

O remorso, emoção completamente nova, corroeu-me o corpo, fazendo meus olhos lacrimejarem.

O garoto não tentara me fazer mal em momento algum, e havia acabado de impedir minha morte. Como eu podia odiá-lo depois disso?

- Sinto muito – solucei, passando a mão pelo rosto. Gesticulei sobre o ferimento no braço dele, curando o corte que havia lhe causado.

Pensei por um momento em meu amigo Papyrus, aquele revenant tão inocente, corajoso e gentil. E percebi que ele não era tão diferente do pequeno humano que me encarava.

Surpresa, senti dedos pequenos tocarem a ombreira de minha armadura.

- Tá tudo bem – o menino voltou a sorrir.

No entanto, a criança lançou um olhar preocupado para o trajeto à frente.

Levantei-me de novo, inspirando pensativamente, tentando pensar no que devia fazer a seguir. Não podia deixar que o garotinho que havia salvado minha vida corresse o risco em ser capturado e morto por outros monstros.

Não me preocupava com Papyrus, que provavelmente também estava à procura dele no caminho adiante. Se o conhecia bem, cometeria o mesmo deslize louco de poupar aquela criança.

Agora eu tinha uma dívida com aquele pequeno humano. Eu tinha que fazer alguma coisa.

Mesmo que tivesse um preço terrível a pagar.

- Não posso lhe prometer nada – lhe disse, taxativa – vou tentar impedir que Undyne lhe persiga, caso Papyrus não tente capturá-lo… embora eu não ache que quererá, caso converse com ele – embainhei o espadim de volta à cintura – assumo que esteja tentando chegar à Asgore – ele assentiu, ao que deixei escapar um riso nervoso e exasperado – não acho que tenha muita chance, pequeno. Mas agora tenho uma dívida com você. Tentarei fazer com que ela não te persiga – bufei – imagino que ficará decepcionada, mas… não tenho alternativa. Não serei eu a roubar sua alma… sendo que salvou a minha.

Dizendo isso, saí da ponte, dando as costas para ele, e disparando pela neve de Snowdin, desaparecendo em meio à nevasca que havia começado a cair em torno do penhasco.


Eu já havia lutado contra todo tipo de oponente, durante todos aqueles anos de serviço na Guarda Real.

Mas nada nunca me pareceu tão difícil quanto dissuadir o monstro mais inabalável e determinado do Submundo a desistir de sua empreitada.

A ligação que fizera para Undyne já perdurava mais de cinco minutos. E minha capitã – e melhor amiga - não estava nada satisfeita comigo.

Se não tinha capacidade de matá-lo, devia simplesmente tê-lo capturado, e o trazido a mim, Aayrine! - exclamava a voz do outro lado da linha, fazendo o celular vibrar como uma cascavel.

- Eu já te disse – rosnei, exasperada - que diabos, Undyne! Sabe que eu, mais do que ninguém, sempre quis capturar uma alma humana! Não acha que há algum motivo para eu não ter feito isso?

Ah, é? - a voz de Undyne ecoou, sarcástica – e o que foi que amoleceu tanto a vice-capitã da Guarda real, Aayrine?

- Você não entende… por que não esteve lá – protestei – ele é diferente, Undyne. Não é mau. Ele… - resfoleguei, finalmente desabafando – ele salvou minha vida.

A ligação ficou silenciosa por um momento.

Salvou sua vida… - Undyne riu baixo – e não lhe passa pela cabeça que foi um truque? Para ganhar sua confiança e se livrar de você?

- Se quisesse se livrar de mim, teria me deixado cair daquela ponte, Undyne.

Não importa! - ela respondeu, encolerizada – Aayrine… eu nunca estive tão decepcionada com você. Se quer abrir mão desta chance, fique à vontade – sua voz baixou, sibilante e ameaçadora – eu gosto muito de você…. De verdade. Mas se tentar impedir qualquer outro monstro de capturar este humano… ou se resolver ficar em meu caminho… - pontuou sombriamente – farei você se arrepender.

E desligou, encerrando a ligação.

Recostei-me contra a poltrona, refreando a vontade de arremessar o celular do outro lado da sala.

Droga… - grunhi.

Encarei a porta, revirando o olhar. Num átimo, me levantei do assento, apanhando outra vez meu espadim, acoplando-o na cintura.

- Aonde você vai?

Estreitei o olhar para Bob, que estava confortavelmente sentado em um dos pufes da sala, piscando curioso em minha direção.

Gracejei de maneira aflita, suspirando.

- Sair, Bob. Vou sair.

- E vai fazer o que? - indagou, erguendo-se na almofada.

Sorri de lado, tentando ignorar a expressão dele, de quem achava que eu havia perdido completamente a cabeça;

- Uma burrada, Bob – respondi, abrindo a porta - uma tremenda… de uma burrada.

O Espadim e a Manopla - Uma História de UndertaleOnde histórias criam vida. Descubra agora