Trégua

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NITCH


Eu podia ver a perplexidade nos olhos de Aayrine.

- Nitch... Buster? - sua voz era pouco mais que um sussurro.

- Sim...

Minha mão, antes erguida, voltou a se retrair. Por que diabos ela parecia tão incrédula?

Vi-a balançar a cabeça, recuando um passo.

- Não é possível... - guinchou – todos disseram que você estava... morto. Que havia morrido ainda bebê... como a sua mãe.

Foi como levar um soco na boca do estômago.

- Você... - falei, atordoado – conheceu... minha mãe?

As orelhas dela se retraíram. Para minha surpresa, um imenso laivo de tristeza varreu seus olhos rubros.

- Minha... mãe a conheceu – disse em voz lenta – enquanto os sobreviventes da guerra... começaram a se estabelecer no subterrâneo – ela parecia evitar deliberadamente me encarar – ficou sabendo da morte de Asha Buster... alguns dias depois – balançou a cabeça – mas todos acharam que o filho dela também tinha...

Estava me sentindo ofegante.

A família daquela garota havia conhecido meus pais biológicos.

- Eu fui criado na Vila Temmie – disse repentinamente, sentindo minha boca secar – fui deixado lá... ainda bebê – as palavras saíam da minha boca sem qualquer receio, mesmo que eu estivesse revelando a ela todos os segredos que havia protegido durante todos aqueles anos – e então... o rei Asgore me adotou.

Um sibilo perplexo passou por seu focinho entreaberto.

- Adotou? - sua mão apertou a empunhadura do espadim.

- É uma... longa história – estava começando a me sentir exasperado. Era muito para digerir – quem... é a sua mãe?

Aayrine ficou em silêncio por alguns segundos.

- Mistrel Nacabi – encarou-me enfim, o focinho eriçando-se por um momento – esposa de Terso Nacabi... - piscou – vice-capitão da antiga Guarda Real.

Eu reconhecia aquele nome. Asgore havia me contado a história de todos os corajosos guardas que haviam lutado na grande guerra.

Porém, também nunca havia imaginado que minha figura favorita – Terso, A Lâmina de Ferro – havia tido uma família.

E muito menos uma filha.

Parando para pensar, eu deveria ter reconhecido os sinais. A impetuosidade. A habilidade massiva de defesa pessoal. Os ataques brutos e ríspidos.

Meu pai havia feito questão de enfatizar estas características de Terso em suas histórias.

Por mais que fosse arrogante e presunçosa, Aayrine de fato lembrava muito o pai. Afinal, eu tinha que admitir – ela realmente era uma monstra de extrema fibra e coragem.

E teimosa – terrivelmente teimosa. Igualzinha a Terso.

- Sua mãe... Mistrel... - indaguei repentinamente.

A carneira virou o rosto.

- Morreu. Há dois anos.

Me retrai, inesperadamente corroído de remorso.

- Eu... sinto muito – desculpei-me – eu não quis...

- Não, tudo bem – ela deu uma risada amargurada – não doeu mais do que aquele soco que você deu em mim.

Mas eu percebia que Aayrine estava mantendo uma fachada diante de mim. Relembrar da mãe havia trazido um brilho angustiado em seu olhar.

E eu sabia exatamente o que era se sentir perdido e solitário.

- É sério – insisti, penalizado – eu... sinto muito.

Estava começando a reavaliar tudo que havia acontecido entre nós dois. E se eu a tivesse realmente julgado mal, desde aquele dia em que eu a havia conhecido? E se eu, ainda inocente e imaturo, havia feito a burrice de piorar as coisas?

Ela era uma guerreira. Fazia parte da Guarda Real. Queria defender a justiça e o nosso povo tanto quanto eu.

Por que eu havia tornado as coisas tão desagradáveis entre mim e uma irmã de armas?

Vi-a abraçar o próprio corpo.

- Tudo bem – grunhiu - deixe isso para lá, garoto.

Suspirei.

- Olha... acho que começamos com o pé esquerdo... - fiz uma careta – de verdade. A gente pode... recomeçar do zero?

Voltei a erguer a mão, desta vez de forma mais humilde.

Observei Aayrine fitar minha mão desconfiadamente, como se ela fosse algum tipo de cobra peçonhenta prestes a dar o bote.

Por fim, ela soltou um longo suspiro, segurando-a e sacudindo-a.

- Feito – concordou – até por que estou decidida à não levar outro gancho dessa sua manopla. Mais um soco desse, e acho que vou ter que pedir uma licença por invalidez.

Reprimi o riso, vendo-a dar uma risadinha sarcástica.

- Você também é boa – admiti, massageando a testa enfaticamente – quase abriu um rombo no meu crânio com aquela cabeçada.

E então, surpreendentemente, nós dois rimos em conjunto.

Eu estava aturdido.

Há alguns minutos, estávamos prestes a nos matar. E agora, ambos estavam tirando sarro um do outro, como se fossem velhos amigos de infância.

Fosse por ter me identificado com a difícil situação dela, fosse por perceber que Aayrine não era tão desagradável como havia imaginado... o fato era que eu já não sentia nenhuma antipatia por aquela jovem carneira naquele momento.

Era como se nosso longo histórico de desafeto jamais tivesse acontecido.

_ Ei... você disse que Asgore te adotou, certo? - perguntou, franzindo o cenho.

- Ah – revirei o olhar, dando de ombros – esta é uma história bem longa, se me permite dizer.

- Bem – ela apoiou a lâmina do espadim no ombro, risonha – eu estou com tempo de sobra. Afinal, estava patrulhando essa área hoje, até você surtar e me atacar – brincou, desta vez sem o tom petulante de outrora - podemos andar por aí, e você me conta essa fascinante história. O que me diz?

Definitivamente, era um bom plano. Ate por que também queria saber mais sobre meus pais, e a relação deles com a família de Aayrine.

Assenti, entusiasmado.

- Nitch!

Virei a cabeça, vendo Bob me acenar do corredor adiante.

- Eu já volto – ciciei, vendo Aayrine se adiantar, tomando o corredor que levava de volta ao Núcleo do Underground.

- E aí, bola de pelo? Você vem ou não vem?

Aayrine gargalhou quando errei propositalmente a esfera de fogo que lancei contra ela, balançando veementemente a cabeça, enquanto Bob retornava pelo corredor sul, sumindo de vista.

Então, a partir daquele dia, Aayrine Nacabi começamos a nos tornar verdadeiros amigos, a despeito de todo o atrito que havíamos tido anteriormente.

Porém, se eu tivesse alguma ideia do que me aguardava no futuro próximo, definitivamente teria pensado duas vezes ante de poupar aquela criatura imprevisível...

O Espadim e a Manopla - Uma História de UndertaleOnde histórias criam vida. Descubra agora