NITCH
Enquanto aguardava no jardim da Nova Casa, pus-me a admirar o domo acima de mim, suspirando lentamente.
Depois de tantos anos, era a primeira vez em que eu reparava no quanto aquela área do Underground era solitária, cinzenta e tristonha.
E eu nunca havia me sentido mais dividido.
Dividido entre obedecer as ordens de meu pai adotivo, ou dar uma chance daquele pequeno humano se salvar. Dividido entre contar à Aayrine o que realmente sentia por ela, ou perceber que não era digno o suficiente para sequer continuar ao lado dela.
As dúvidas giravam em minha cabeça.
Fechei minha mão em punho. A manopla em meu braço rangeu suavemente, cintilando com a magia que eu estava contendo naquele momento.
O garoto havia salvado Aayrine na morte. Como eu poderia roubar a alma de alguém de maneira tão fria, depois de tudo que ele havia feito por quase todos os monstros que havia encontrado?
Ao mesmo tempo, faltava muito pouco para libertar nosso povo. Mais uma alma, e a barreira poderia ser destruída para sempre. E nada garantia que os desertores e traidores seriam perdoados pelo rei, agora ou após a abertura do Underground.
Eu havia feito um juramento. E não poderia voltar atrás.
Nem mesmo por Aayrine.
Eu só podia esperar que Asgore tivesse clemência com todos aqueles pobres monstros que haviam sido levados a poupar aquele garotinho. Nenhum deles – nem mesmo a própria criança humana – tinham culpa do que estava acontecendo.
Fechei os olhos por um momento.
Estava defronte a um dilema gigantesco. Já ão sabia qual decisão tomar agora. Talvez tudo que me restasse fosse esperar…
E dar aquele garotinho o fim mais rápido e indolor que eu pudesse lhe oferecer.
O humano não merecia sofrer – não depois de toda a bondade, bravura, paciência, perseverança, justiça, integridade e determinação que havia demonstrado.
Eu devia isso a ele. Se tivesse que morrer, seria em minhas mãos – um final bem melhor do que poderia aguardar se confrontasse o rei.
Agora, só precisava tomar coragem para cumprir aquela difícil missão.
Passou-se um longo tempo.
Várias horas.
Havia adentrado em meus aposentos, tentando controlar a crescente onda de ansiedade que me assolava.
Então, foi com um grande sobressalto que ouvi o telefone tocar.
Trêmulo, apanhei o celular.
- Alô?
- Nitch…?
Senti como se uma dúzia de borboletas tivessem surgido dentro de meu estômago naquele exato momento.
Era ela.
- Rine… - ofeguei, sentindo a boca seca – se ligou para me dissuadir de enfrentar o garoto… - resfoleguei – sabe que não posso fazer nada….
- Não – Aayrine me interrompeu. Parecia desesperada – eu… sim, também queria falar sobre isso. Mas… - sua voz tremeu - não foi por isso que liguei.
- Então foi pelo que?
Houve alguns segundos de silêncio.
- Eu… precisava falar… sobre o que aconteceu no cárcere.
Enrijeci, me enregelando.
- Sobre qual parte… especificamente? - guinchei, sentindo meu rosto esquentar de maneira absurda.
O tom de Aayrine era um misto de deboche, aflição e insegurança.
- Mais especificamente… a parte em que você me beijou.
Inferno.
Balancei a cabeça, atordoado. Não entendia por que estava me sentindo tão… perdido.
- Quer saber o por que? - indaguei, torcendo futilmente para receber uma resposta negativa.
- Sim.
Eu não a estava vendo, mas sabia que Aayrine tinha acabado de corar.
- Olha… não sei o que deu em mim – as palavras de Sans pareceram surgir em minha mente, e senti uma estranha serenidade tomar conta de mim – eu… tive que fazer isso. Entende? - sussurrei – eu… - um meio sorriso tristonho cortou o lado de meu focinho – será que precisei apenas de uma amiga c que acreditasse em mim… para eu poder me apaixonar?
Outra longa pausa.
Podia sentir o choque do outro lado da linha.
- Nitch… - foi tudo que ela disse – isso… é loucura.
- Eu sei.
- Quer dizer – ouvi-a pigarrear, e segurei um riso nervoso, ao perceber a tentativa fraca de sarcasmo em sua voz – como assim? Acreditar em você? Eu praticamente te agredi na primeira vez em que nos vimos. Quase lutamos até a morte. Sempre te achei um completo bobão, que não sabia aproveitar o próprio potencial. Eu tive que arrastar você bêbado para minha casa, seu mentecapto. E praticamente fui aprisionada por um dia inteiro numa cela poeirenta por sua causa. Viu só? Você só me dá despesa – já era impossível não notar a encenação em seu timbre - acreditar em você? Ha, ha… não me faça rir.
- É – mordi o lábio – com certeza eu me apaixonei… por você ser uma monstra incrível.
Achei que o telefone tinha silenciado, já que não houve resposta por quase meio minuto.
Aayrine finalmente retornou – a voz estranhamente embargada.
- Seu idiota.
- Também te amo, Aayrine.
Outro ofego.
- Quando eu te ver outra vez… eu não vou responder por mim, Buster.
Sorri, sentindo o coração acelerar.
- Eu também não, Nacabi – respondi – eu também não.
Mais uma pausa.
- Nitch… - seu tom era mais aflito e sério agora – por favor… seja o que for fazer com o garoto… seja… rápido – ela hesitou por um momento – e…. dê uma chance a ele, se for possível….
O sorriso em meu rosto murchou rapidamente.
- Eu já disse, Rine…
- Eu sei. Eu sei – choramingou – só quero que tudo isso acabe… sem sofrimento. Está bem?
Sabia que não podia lhe prometer nada.
Mas ouvir a dor em sua voz… seria uma mentira piedosa, que eu esperaria ser perdoada quando tudo aquilo terminasse.
- Está bem, Aayrine. Sem sofrimento – esperava que houvesse suficiente convicção em meu tom de voz – eu prometo.
- Obrigada – ciciou, angustiada – até mais, Buster.
Baixei a cabeça.
- Até mais, Nacabi.
Mas a ligação já havia se encerrado.
Baixei o telefone, olhando pela janela da sala. Soltando o celular em cima da mesa de centro, aproximei-me da veneziana, esquadrinhando os arredores do jardim.
Olhei para a manopla que repousava no canto do sofá, vincando a testa.
Já não me importava qual seria o desfecho de tudo.
Uma coisa era certa: depois que tudo aquilo terminasse, eu jamais voltaria a usar o presente de meu pai para ceifar uma vida inocente.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Espadim e a Manopla - Uma História de Undertale
FanfictionEle é reservado. As feridas de seu passado o assombram. Criado sem sua família biológica, oculto dos demais, sempre á procura de um objetivo, suporta angustiadamente sua vida solitária. Ela, impetuosa e bélica, incorruptível em sua busca por justiça...