🔴 Capítulo 15/1 - Thompson

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      Queria dizer que nas duas semanas que sucederam aquela conversa, nós ficamos fora do caminho um do outro. Mas quando o clima está tempestuoso, por mais que tente fugir da chuva, acaba se molhando onde quer que vá. Müller e eu nos esbarramos mais naqueles dias do que em todos os meses que trabalhávamos no mesmo departamento.

       Foram inúmeras as vez que seus pés captaram a vibração dos meus passos duros e apressados, mais vezes ainda as que meu perfume entregou minha proximidade. Contudo, em todas elas, seus olhos escolheram não me encarar.

       Tiveram ocasiões que lhe obrigou não apenas a me olhar, como também a falar comigo e, talvez, estas tenham sido as piores, já que sua atenção se limitou à minha boca, da forma mais protocolar possível.

      Tenho que admitir que teve momentos que ele não estar me encarando foi bom, assim não precisei ser menos expressiva quando Zoe fazia necessário um parecer da neurologia, ou melhor, de um neurocirurgião específico. Alguns procedimentos a presença dele até que era necessária; outros, era ridícula; e em todas, o flerte descarado da cardiologista me dava asco.
Agradeci por ele não ter visto o nojo ou deboche no meu rosto, ou quando me divertia com seu desconforto. 

      Apoiada na bancada da enfermagem, separava, na pilha imensa que Theo me entregou, os prontuários que tinham meu carimbo e assinatura. Apreciei o silêncio que embalava a madrugada na ala pediátrica, ao desligar dos fones-de-ouvido que guardei no bolso do jaleco.

      A calmaria durou pouco, a campainha de um dos quartos foi tocada, acendendo também uma luz na parede, ao lado relógio. O enfermeiro saiu de junto do computador e foi atender ao chamado, retornando poucos minutos depois para preparar a medicação solicitada.

      — Essa crise foi forte, hein. Coitadinha — lamentou o enfermeiro ao retornar. — Ainda bem que seu ex-chefe estava lá com ela.
Li o nome no cabeçalho do prontuário depositado sobre o balcão depois das anotações: Julia Cristina Pope.

      — O que Müller fazia na pediatria a essa hora?

     — Quando nenhum dos pais pode ficar de acompanhante, ele sempre lê para ela dormir. — O rapaz se concentrou no que digitava. — Ele também costuma fazer companhia para um velhinho na ala oeste. Nada como inocência ou demência para considerar a presença dele agradável.

     Por um breve instante de insanidade, peguei-me pensando no fato de ser velha demais para ser inocente e muito jovem para fazer parte do outro grupo, mas mesmo assim sentia falta dele, mesmo não tendo sido nada agradável nossos últimos encontros, vê-lo irritado era melhor que não vê-lo em situação alguma.

     Abracei os prontuários juntos ao peito e caminhei de propósito pelo corredor que me oferecia uma visão privilegiada do quarto da pequena. Alguns metros antes de passar pela porta de número 603, desacelerei os passos para acompanhar a conversa dentro do quarto.

      — Minha mamãe disse que Deus recompensa os bons e puni os maus. — O silêncio do médico deu a menina a deixa para continuar: — Tio, eu não sou uma menina má, eu juro que não sou. Por que Ele está me punindo? — Engoli em seco apoiada na parede do lado de fora, imaginando como ele estaria frente a frente com a menina. — Eu juro que não sou, tio, fala isso para Ele. Fala que pode parar de me castigar agora. Por favor, tá doendo muito. 

      Avancei o suficiente para conseguir espiá-los. O médico, parada ao lado da cama, foi abraçado na altura das costelas pela figura que soluçava de tanto chorar. Müller retribuiu, a segurando com um dos braços e afagou os cabelos dela com a outra mão.

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