🟢Capítulo 16/1 - Müller

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       Por exatas sete horas fiquei alheio a tudo, com a mente vazia e a impotência que me manteve preso à cama com os olhos fixos no teto. A negação deu lugar a raiva, depois esta perdeu para a barganha, aquele era o tipo de situação que não oferecia segunda chance. Não importava o quanto implorasse a Deus, para voltar no tempo e operá-la, era inútil.

       A depressão era a quarta fase do luto, o que significava que logo só teria a próxima e última, aceitar, então talvez a dor desapareceria. Contudo, nesse caso era o mesmo que superar e seguir em frente, e isso significava esquecer sua precoce existência.

     Fui assolado por uma sensação dolorosa de vazio, de certa forma sua perda era culpa minha. Mesmo assim nenhuma lágrima enturveceu minha visão ou molhou meu rosto.

      O celular vibrou novamente sobre o colchão, onde também se encontrava meu corpo desnudo, envolta ainda pela toalha úmida. Não sabia quem estava ligando desta vez, e sequer tentei contar quantas chamadas sucederam esta, mas podia afirmar que as mensagens de texto já passavam das cinquenta, e pertenciam a quatro destinatários diferentes.

      A brisa gélida que adentrou a janela, além de ouriçar minha pele, também me fez lembrar qual era visão que teria da varanda. Nada podia ser mais melancólico do que o vasto gramado com milhares de lápides tão acinzentadas quanto céu nublado sobre elas. Era de péssimo mal gosto, que eu morasse a uma altura que possibilitava ver todo o cemitério da janela do quarto.

       Subitamente, me pus sentado na cama, o torpor havia começado passar quando me ocorreu que havia algo no banco de trás da BMW no estacionamento do subsolo que não me pertencia. Havia pego no hospital e jogado no meu carro em uma explosão de raiva, mas aquilo não deveria ficar comigo.

      Caminhei até o closet e vesti um jeans escuro e justo, que poupava-me o tempo de colocar um cinto; e uma das oito camisetas pretas de manga longa que costumava usar sobre o pijama cirúrgico, assim não precisaria abotoar nenhuma das duas peças que estava acostumado.

      Desci até o estacionamento, porém sai a pé, com o cachorro de pelúcia em mãos. Evitei olhar para Sr. Bigles ao longo do caminho, quatrocentos metros que pareceram uma milha inteira.

      Quando finalmente estava diante da escadaria de cinco degraus da pequena capela, hesitei por um minuto e vinte sete segundos antes de entrar, a imagem da última pessoa que havia visto dentro do caixão me paralisou.

     Caixão aberto é uma terrível escolha quando alguém usa o revólver do amante militar, para atirar na própria cabeça. Uma lembrança que havia reprimido nas profundezas do meu subconsciente me golpeou, nela minhas mãos afundaram até os cotovelos na água da banheira, tingida pelo sangue da Ambar, depois mais uma parte de mim se quebrou, fragmentando-se como seu osso occipital com a saída da bala.

       “Agora não vou mais dormir sozinha quando minha mãe não vir”, a imagem de Julie me viera à mente, salvando-me da escolha da segunda mulher da minha vida que não me amou, porém, a fala da garotinha, triturou ainda mais algo dentro de mim.
Percorri o extenso corredor, cujo mosaico no chão se findava na urna branca, que além de simbolizar a pureza da que jazia dentro dela, não transmitia nenhuma paz, a dor era presente e real nos olhos do casal a quem dei os pêsames antes de finalmente me pôr diante dela.

      O rosto angelical e alvo, os lábios vedados para sempre, pulverizaram os cacos minúsculos, que nem tinha me dado conta de que existiam. Era uma dor que prometi que não experimentaria de novo, mas esta era diferente da que me levou escolher não operar mais crianças, era de arrependimento e culpa, talvez ela não estivesse ali se tivesse tentado.

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