🟢Capítulo 4/1 - Müller

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      Uma emergência não pode ser prevista, nunca está nos planos de alguém, no entanto, quando uma aciona seu pager, todos os outros planos desaparecem instantaneamente. Toda aquela imprevisibilidade não se encaixa nos padrões, na verdade não sobra muito tempo para se pensar em um padrão. Naquele momento tudo funcionava no modo automático.

     Guardei o pager no bolso e coloquei as pernas para fora da beliche, enquanto minhas mãos impacientes tateavam entre as cobertas à procura da parte de cima do uniforme. Desci da cama sem usar a escada e vesti a camiseta ainda na penumbra. Antes de deixar o quarto dos plantonistas, peguei o moletom que estava pendurado na porta do armário de cobertores e joguei sobre o ombro direito.

      Meus olhos tardaram a se adaptar a claridade do corredor. As pupilas dilatadas combinadas à luz fluorescente já era o suficiente para irrita-los e fazê-los marejar, contudo eu normalmente já sofria de uma sensibilidade visual considerável, então a midríase era apenas uma somática momentânea ao problema maior que nunca me deixaria.

       Quando cheguei ao Pronto Socorro no primeiro andar, dirigi-me até a Trauma 2, tão logo me deparei com o uniforme preto detrás de um jornal aberto, que cobria as faces do cirurgião-chefe.

     Hesitei antes de empurrar a porta de vidro e finalmente entrar.

     — Agradeceria se você não deixasse tão claro que está me evitando — disse Cortez depois de baixar o jornal.

      Tirei os olhos do rosto dele e percorri brevemente a pequena sala de vidro temperado, não encontrei nenhum paciente sobre a maca. Tudo estava organizado demais.

      — Tem que parar de simular uma emergência toda vez que quiser me ver.

      — Não acionei seu pager desta vez. Também me solicitaram. — Ele mostrou a mensagem na tela do celular. — Mas tomei a liberdade de acionei sua residente.

      — O lugar dela não é aqui, Cortez. — Peguei um avental descartável em uma caixa e o coloquei.

      — Tenho certeza de que ela já esteve numa Emergência outras vezes.

      — Sabe que não estou me referindo a isto.

      Cortez levantou-se da cadeira e também vestiu um avental, o que me levou a olhar para a porta. Uma interna e um enfermeiro empurravam a maca em nossa direção, deixando uma trilha fina, viscosa e vermelha no piso branco.

      Era fato que olfato e paladar era conectados, mas podia até sentir o gosto de ferro dentro na minha boca. Parecia loucura sentir o gosto do sangue de outra pessoa entre meus dentes, ao redor da minha língua, descendo lentamente pelo minha garganta.

     Logo, notei que aquilo não era psicológico, o cheiro metálico talvez viesse dela, mas não era o gosto do sangue da paciente que eu sentia, era o meu próprio. Em algum momento eu havia cravados os dentes na mucosa interna dos meus lábios com tanta força que um pequeno corte sugira ali e o sangue se esvaia lentamente dele.

      O chefe tocou meu antebraço de leve, fazendo-me encara-lo, então disse:

      — Lá vem você de novo com essa história. — Ele me entregou um par de luvas. — Tem que aceitar que ela vai ficar e tentar não demorar muito para começar a coloca-la nas suas cirurgias, porque já faz uma semana que ela chegou e ainda não te viu operar nem da galeria.

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