A claridade reduzida que ultrapassava as vidraças e banhava o quarto, no momento que o alto-falante ecoou no corredor me obrigando a despertar, entregava que não passava muito das seis, já que o sol sequer havia nascido.
Deixei o sofá e antes de ir em direção ao banheiro, olhei além das cortinas entreabertas e do vidro, me deparando com um céu carregado, consumido por nuvens densas o suficiente para impedir que os raios do sol ultrapassem. O que significava que ele podia muito bem ter nascido a horas, e eu, estava muito atrasada.
Peguei o celular no bolso do moletom que usava sobre o uniforme, e o fato de estar sem bateria logo explicou a ausência do despertador. Foi impossível que o desespero não me consumisse ao me dar conta de que tinha perdido a ronda da manhã.
— Então é aqui que você está se escondendo — John atacou, quando deixei o banheiro depois das minhas higienes. — O Müller pediu pra você encontrar ele na biblioteca.
Meu coração perdeu totalmente o compasso, e um arrepio percorreu minha espinha.
— Ótimo — respondi com nenhum entusiasmo.
— Ele ainda estava numa cirurgia que começou durante a madrugada, quando Cami e eu iniciamos nossos plantões. — Me recordei de quando o pager dele foi acionado, e o cirurgião deixou o sofá, pondo fim no meu constrangimento. Em outra ocasião gostaria de ir com ele, mas não depois do episódio da minha mão na perna dele. — Então se não falar sobre a ronda, eu também não vou.
— Prometo que vou te recompensar por isso. — Me joguei em seus braços, abraçando-o pela cintura. Ele retribuiu, depois me afastou, e me encarando, disse:
— Na verdade, você podia ir em um lugar comigo no sábado. — Dei de ombros, concordando com a proposta. — Mais uma coisa: pela cara dele, perder a ronda é o menor dos seus problemas.
Aquela frase fez um arrepio brotar novamente na minha nuca e percorrer toda a extensão da coluna. O que me fez lamentar tanto por não ter acordado a tempo de fazer a ronda da manhã, a última visita do meu plantão, e também antes de Müller deixar o centro cirúrgico, pois, assim, estaria há quilômetros do hospital e do meu mal-humorado superior.
Queria que a biblioteca fosse mais longe, assim, teria mais tempo para me preparar mentalmente para o embate. Porém, para meu tão grande azar, ela ficava no mesmo corredor, do lado contrário ao quarto dos plantonistas, entre a sala de arquivos e a de reuniões. Havia uma fresta na porta, isentando a necessidade de ter que retornar ao quarto para procurar meu crachá, cujo código no verso servia como cartão de acesso para o pequeno computador preso à parede ao lado da porta branca.
Adentrei a sala, indo direto para os fundos, onde ficava a sessão de neurologia e a maior entre as mesas. Uma que recebia boa claridade e ventilação da única janela da sala. A mesa dele. O médico não estava junto a ela, mas seus matérias estavam dispostos sobre a superfície vernizada da mesa do modo mais organizado possível. Na tela no laptop, uma equação complexa; sobre um livro fechado de glioblastoma, havia uma folha com algumas anotações desconexas em sua impecável caligrafia; ao lado da pilha de casos, apenas um copo térmico e o palito de seu último pirulito, deformado em uma das extremidades por marcas de dentes.
Olhei ao redor e não o encontrei, porém consegui ouvir, um pouco mais distante, entre as prateleiras de imunologia e infectologia, um som repetitivo, que eu sabia exatamente qual era a origem: o maldito cubo-mágico. O que pelo que John havia me advertido uma vez, o caso era bem pior do que parecia, pois Müller não sabia a resposta para algo.
O avistei parado de frente para uma parede branca, ao fim do corredor de prateleiras. Aproximei-me com o máximo de sutileza possível, sem fazer barulhos, mesmo estando ciente de que, de algum modo, ele já havia percebido minha presença. Ele sempre percebia.
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Não perca o Controle
Romance[Obra Registrada] Medicina nunca foi o sonho de Melanie Thompson, mas desde a infância foi incumbida a acreditar que um dia seria. Depois da morte da mãe, a garota se viu obrigada a atender seu último pedido. No entanto, a neurocirurgia foi apr...