A submissão do pecado

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Capítulo IA submissão do pecado

Ana de Luz vivia numa cidadezinha chamada Pedacinho do Céu. Você não a encontrará no mapa, quisera eu contar tudo o que sei, mas há um mistério que deve ser respeitado. Contente-se, meu amigo leitor, em saber apenas o que eu posso dizer agora: tudo começou e se desenrolou longe daqui, lá para as bandas do interior, no Sul do país.

Importa que comecemos esta história pelo cenário, que era incrivelmente colorido, onde o som ambiente se alternava entre o toque de uma gaita e a risada de um público caloroso. Via-se alguns palhaços, malabaristas, mágicos, cartomantes, mas apenas uma bailarina no Circo da Alegria.

Era uma jovem de cabelos negros, envolvidos em tranças frouxas. Seus olhos eram pequenos e se apertavam um pouco nas extremidades. O nariz era bem arrebitado e a boca carregava um sorriso largo, dentes brancos e lábios proporcionais. Os seios eram pequenos, as pernas bem definidas e os pés, bem, os pés eram terríveis, como de toda boa bailarina.

Quando dançava, Ana de Luz parecia mais uma ave que pousa no picadeiro. No entanto, não tinha a liberdade de uma. A moça vivia sob o domínio do dono do circo. Pouco tempo depois de ter se casado com ele, acabou anotando, num pedaço de papel, um resumo grosseiro do que era viver com aquele homem. E foi exatamente assim:

Desvantagens:

- Eu me sinto sufocada

Vantagens:

- Estou livre do passado solitário na mansão de tia Ofélia

- Desenvolvi meu talento para o balé

- Posso comprar o que eu quiser

Aquela anotação foi escrita num momento tão reflexivo, que ela decidiu guardar o papel até hoje. Você pode comprovar o que estou dizendo. Se um dia a visitar, peça para ver a folhinha amarelada que está na terceira gaveta do criado mudo, dentro de um saquinho de veludo azul. Eu vi. A letra era firme, muito diferente da carta trêmula que me escreveu outro dia, exigindo fidelidade na descrição dos personagens.

A diferença de idade entre o casal era bastante considerável. Enquanto a moça se ardia na ansiedade da juventude, o homem se tranquilizava na estabilidade de sua experiência. Ana de Luz se encantava com a segurança do companheiro e só conseguia se sentir protegida ao seu lado. Bem que muitos rapazes mergulhavam na fantasia de conquistar a bailarina do circo, mas ela não tinha olhos para nenhum outro, tampouco eles tinham coragem de ultrapassar a grande barreira que carregava na bainha uma pistola: Roberto Roselonk, mais conhecido por Gorro.

Com o tempo, o que era prazer, tornou-se impossível de provocar saudade. Gorro a sufocava e, quando ela menos esperava, sentia em seu pescoço o bafo quente da respiração dele. Não podia sair sozinha, não podia falar com rapazes, não podia cortar o cabelo, não podia discordar dele, muito menos na frente de alguém. Era o seu senhor. Então, ela não sabia se o que sentia pelo marido era amor, medo ou gratidão.

Capítulo II – A falsa satisfação

Pedacinho do Céu sempre foi uma cidade turística muito abastada, mas depois que os jogos de azar foram proibidos, em 1946, houve uma grande queda econômica e, apesar da beleza natural e das águas termais da cidade, ela nunca mais conseguiu se erguer novamente.

O que atraia os turistas e a própria população era a luxuosa casa de jogos. A vegetação vasta, as águas medicinais e o gostoso frio do inverno eram como uma cereja no bolo: bonita, saborosa, mas dispensável.

Aquele foi um tempo desgraçado para as famílias que perderam suas fortunas no cassino e não conseguiram mais recuperar o dinheiro. Por causa das dívidas, houve muito suicídio naquele ano. A extravagância da alta burguesia havia se transformado em luto, quase ninguém comprava, vendia ou saia para se divertir. As ruas de Pedacinho do Céu logo ficaram vazias. A angustia fez com que muita gente procurasse, na calada da noite, as cartomantes do circo, que eram primas de Gorro.

Ana de Luz e o Circo da Alegria Onde histórias criam vida. Descubra agora