Já era quase 21h quando Ana chegou à terra dos Rosenlonks. Não havia ninguém do lado de fora. Apenas a lamparina da tenda das ciganas estava acesa. O relincho do cavalo fez uma delas sair para ver quem era.
— Graças a Deus! Ana de Luz! Onde você estava, menina? Estávamos tão preocupados!
Ana olhou bem para aquele campo triste que a lua insistia em brilhar. Era um breu. Um vazio sem fim. Decidiu que se perderia nas agulhas de um conflito, mas jamais no deserto de um coração sem amor.
— Onde está Gorro?
— Passou o dia todo procurando você na cidade...
— Ele está em casa? Está dormindo?
— Não...Ele resolveu ficar com a gente esta noite. Está lá dentro, entre! Não se preocupe...Com certeza ficará muito feliz em vê-la e não vai brigar porque você saiu sem avisar e voltou esta hora – a velha juntou as mãos como quem reza – Tenho fé que vocês ficarão bem! Ele vai te perdoar!
— Me perdoar? Ele é quem precisa do meu perdão! - respondeu secamente.
— Ah, filha! Eu não sei o que aconteceu com ele...Acredite! Nunca o vi tocar numa mulher antes. Isso é vergonhoso para nossa família, mas está arrependido, tenho certeza!
Ana de Luz entrou na tenda sem falar nada. Gorro estava sentado no tapete, de cabeça baixa, enquanto as primas faziam companhia. "Uma cena medíocre", pensou ela, desmerecendo toda a assistência que as mulheres davam ao primo.
— Ana! Onde diabos você estava?
— Descobrindo a verdade – respondeu friamente, sem conseguir resistir ao excesso de hipocrisia numa tenda aperta.
— Do que está falando? Isso são horas de chegar?
— Confesse que matou o meu tio, Gorro! - o sangue começou a subir.
O homem ficou pálido quase imediatamente.
— Quem te disse isso? Você está louca!
Ela não estava louca, mas sofrendo de intolerância à manipulação. Não admitiria mais, embora estivesse numa situação vulnerável, que Gorro a fizesse se sentir culpada.
— Confesse! - gritou – Confesse!
Gorro não conseguia olhar nos olhos da esposa, então a jovem partiu para cima dele – mas não tinha força suficiente para machucá-lo.
— Pare! Você vai se machucar! - ele pediu – Meu amor, pare!
— Eu te odeio, Gorro! Pelo amor de Deus! Confesse!
— Eu confesso!
Enfim, ela parou. Os dois se olharam. Ambos estavam chorando.
— Por quê?
— Por favor, não me pergunte isso! Quem te contou?
— Por quê, Gorro? Tenha misericórdia de mim! Eu preciso da verdade! - bateu no próprio peito - Por quê? Foi alguma vingança? O que minha família fez contra você? Foi por isso que tentou me conquistar? Eu faço parte de algum plano?
— Não! Não! Por tudo que há de mais sagrado, Ana! Não duvide do meu amor por você! - respirou fundo - Eu não sabia que você era uma Zancolleoni quando a conheci.
— Mas você me deixou na mansão, então soube desde o primeiro dia.
— Eu lembro que foi uma surpresa ruim quando descobri, mas eu já me sentia tão envolvido...Você se lembra que cheguei atrasado quando fui te visitar da primeira vez no balé? Eu relutei muito! Você não faz ideia de como foi angustiante...Pensei em não aparecer, mas meu coração a queria tanto...Você foi a melhor novidade da minha vida, meu anjo! Eu fui contratado para matar. Eu era muito novo quando cheguei aqui no Brasil e precisava do dinheiro. Me ofereceram uma grande quantia.
— Quem contratou? - perguntou, tentando evitar as justificativas dele.
Gorro mordeu os lábios, passou a mão na cabeça e respondeu:
— Ofélia Zancolleoni.
— O quê? Você está mentindo?! Por que ela faria isso? Ela amava meu tio!
— É verdade! E foi por isso que ela me contratou. Não para matar Edmondo, mas Sofie, sua amante. Eu não tinha experiência com armas e estava nervoso. Quando atirei,seu tio se jogou na frente. A mulher começou a gritar e eu atirei nela. Os dois morreram.
— Ah, meu Deus!
— Sua tia me odeia por isso. Ela até se recusou a pagar a outra metade, mas eu já tinha sujado as minhas mãos de sangue e a ameacei. Ela acabou pagando. Eu prometi que nunca contaria a ninguém sobre nosso acordo, caso ela também mantivesse a palavra.
— Eu soube que houve uma testemunha...
— Eu também o matei. Eu não consegui mais parar depois da primeira vez.
— Saia daqui!
— Eu...
— Saia daqui! Saia daqui! Saia daqui! - gritou histérica.
As ciganas tentaram acalmá-la, enquanto Zulka tentou convencer Gorro a sair da tenda.
— Eu vou sair. Quero que contem tudo para ela. Contem tudo sobre nós!
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Ana de Luz e o Circo da Alegria
ChickLitUma senhora, nascida em 1929, resolveu me contar sua história: uma infância solitária na mansão de tia Ofélia e uma juventude embevecida por um homem temido, vinte anos mais velho, dono do circo da cidade. Você vai se emocionar!