27. Os presentes de Ana

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Senhorita Lis tinha um carinho especial por Ana de Luz, não só porque a menina era uma das suas melhores bailarinas, como também pelo tempo que a conhecia. Por isso, quando soube do castigo de Ofélia, ofereceu uma bolsa integral à aluna, com algumas condições:

— Eu quero profissionalismo, Ana!

— Sim, senhora! Mas eu sempre me dediquei muito...

— Eu não vou aceitar que falte, como você já fez, algumas vezes, por um motivo qualquer! Eu não quero saber que você está bebendo, fumando ou vivendo cheia de extravagâncias, está bem?

— Sim, senhora – respondeu, de cabeça baixa.

— Ana! Quando a coloquei na turma de Elizabeth, pensei que você cresceria muito mais rápido do que tem acontecido. Ensaiamos apenas três vezes na semana. As tardes passam voando. Precisa decidir o que quer ser: uma menina comum ou uma bailarina. Qual é o seu sonho?

— Eu...Eu quero ser uma bailarina! Eu quero me apresentar nos melhores circos e teatros do mundo!

— Bom, é um sonho ambicioso, Ana! Então se esforce! Não cabe futilidades na alma de uma bailarina. Quando duvidar disso, olhe para seus pés. Faça valer cada calo.

— A senhora também não me quer com Elizabeth, não é?

Senhorita Lis respirou fundo. Neste momento, enquanto Ana me contava a história, também suspirou. Os olhos dela estavam brilhando e eu vi o excesso de juventude tentando pular para fora.

— Ana, há muito mais que uma bailarina tem que ter além de uma boa performasse no palco. "Deus nos dá o talento e o trabalho transforma o talento em genialidade".

— Anna Pavlova!

— Muito bem! Anna Pavlova! A melhor bailarina que o mundo já viu. Ela não só foi talentosa, mas muito inteligente. É o que quero de você.

Quando Ana de Luz completou 17 anos, tudo estava muito diferente. Ofélia desistiu parcialmente do castigo, porque pensou bem e viu que não seria nada bom para a reputação dos Zancolleonis uma moça maltrapilho. Boas roupas, então, não faltaram. Logo a jovem começou a chamar bastante atenção.

Semanalmente, dois ou três rapazes, algumas vezes até homens mais maduros, chegavam à mansão falando do interesse que tinham em se casar com a moça. Isso era desesperador para ela. Ofélia se divertia muito com a angústia da sobrinha e não só abria as portas para os pretendentes, como também oferecia um jantar para eles.

Uma vez, um rico comerciante chegou com uma joia, mas era para a dona da mansão:

— Dependendo de mim, caso com sua sobrinha já na próxima semana.

— Eu não estou a venda, senhor! - cochichou a menina para que a tia não ouvisse.

— Isso é a sua tia quem vai dizer – respondeu o homem, com um sorriso debochado.

A viúva sempre prometia pensar na proposta, mas ninguém parecia bom o suficiente. Apenas mais tarde é que Ana de Luz entendeu que tudo não passava de pura maldade, graças a revelação de uma das empregadas.

— Eu a ouvi falar com uma amiga, senhorita... Não se preocupe, não! A intenção da sua tia é ver a menina triste...! Quer saber por que ela não escolheu nenhum rapaz ainda? Porque tem medo que a senhorita vá embora e a deixe sozinha.

Era verdade. A velha tinha um pavor danado de ficar ainda mais velha e não ter um sangue de parente ao seu lado. A veneração pelos Zancolleonis era tão grande que apenas eles pareciam ser bons o bastante para ter o privilégio de cuidar da viúva nos dias maus. Ela pedia a Deus para nunca depender dos malditos empregados – tinha quase um nojo deles.

28.O balé moderno de Martha Graham

Foi em outubro de 1946, na Escola Senhorita Lis, que Ana de Luz recebeu um folheto especial: as bailarinas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro fariam uma apresentação no Circo da Alegria.

As meninas ficaram eufóricas. Todas estavam morrendo de curiosidade para ver a tão falada coreografia moderna, que foi inspirada no trabalho da americana Martha Graham.

Graham foi tão importante para a dança quanto Picasso para as artes visuais. Coreografou mais de 200 trabalhos sobre diversos temas sociais e culturais, uma verdadeira musa!

Umas combinavam para ir em grupo, e outras, por outro lado, lamentavam não ter mais dinheiro para uma distração depois do decreto assinado pelo presidente Dutra. Ana de Luz ficou segurando o papel e imaginando o quanto seria bom ter uma oportunidade daquela. Ninguém notou a única bailarina pensativa, exceto Elizabeth.

— De Luz! Vamos?

O convite foi uma surpresa, porque as duas não conversavam há muito tempo. Na verdade, desde que se afastaram, Ana de Luz se dedicou ao balé a tal ponto que acabou superando a jovem Justine, o que causou inveja e uma espécie de guerra fria.

— Ah, não! Obrigada! Minha tia não deixa, você sabe.

— Meu Deus! Você ainda vive assim?

— Ainda pior do que pode imaginar, Elizabeth!

— Olha, eu sei que não somos mais amigas como antes, mas eu gosto de você. Se quiser, passo com meu chofer perto da sua casa e vamos escondidas.

— Ah, isso é muito arriscado e tenho que pensar em tantas coisas - sorriu de tão nervosa.

— É um convite, de Luz! Você só precisa se preocupar em sair de casa sem ser vista. O resto, pode contar comigo! - sorriu animada - Vamos! Se alegre! É o seu sonho, lembra? Conhecer o circo... Ver as bailarinas...

Ana aceitou o convite. No domingo à noite, com o coração bastante acelerado pelo medo de ser descoberta, disse que estava com dores na cabeça e precisava dormir mais cedo. Subiu ao quarto, colocou o melhor vestido e borrifou o resto do perfume que guardava a tantos anos.

A buzina curta do Ford preto tocou três vezes. Este era o sinal. A jovem foi descendo pela janela como fazia para se encontrar com Josh Back, mas agora já não era mais tão habilidosa nisso.

Em vinte minutos, Ana de Luz veria Gorro pela primeira vez.

Ana de Luz e o Circo da Alegria Onde histórias criam vida. Descubra agora