34. O Circo Blefuscu

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No dia a dia, o dono do circo gostava de se vestir com calça jeans, camisa de botão, botas e chapéu de cowboy. Raramente ia ao centro da cidade de carro, como costumava fazer quando ia visitar Ana de Luz. Seu passeio preferido era à cavalo.

Desde que havia chegado ao Brasil, o cigano abandonou muitas tradições dos Rosenlonks. Isso, obviamente, causou um grande desgaste na relação com as primas.

As senhoras da família exigiam que o homem voltasse a se importar com a espiritualidade, pois acreditavam que uma força maléfica o seguia. O problema era que o marido de Ana andava muito cético para cultuar os santos. Gorro tinha fé na própria força e disposição. As primas, já desesperadas com o futuro, apelaram para a padroeira dos ciganos, a Santa Sara Kali.

Numa tarde de sexta-feira, de 1947, Gorro e Zulka discutiam na frente de Ana sobre a desgraça da jovem cigana em chegar aos vinte e tantos anos sem ter se casado.

— Não aguento mais essa conversa, Zulka!

— Gorro! Você não me dá outra escolha!

— Eu já disse que não vou sair da cidade para ir atrás de um cigano legítimo e confiável que deseje se casar com você e morar por aqui. Isso leva muito tempo...Vou deixá-las sozinha? E ainda tem o circo...Esqueça!

— E eu já disse que preciso sair de Pedacinho do Céu enquanto sou nova! Não seja egoísta!

— Patrão, vim o mais rápido que pude! Chegou um novo circo na cidade! - interrompeu Badoque, o palhaço ruivo, ofegante.

— Era só o que me faltava! De onde são? Por quanto tempo pensam em ficar?

— Não sei, patrão! Mas acabaram de chegar! Estão lá no centro distribuindo folhetos e brinquedos. Quando vi, saí correndo para contar ao senhor!

— Com essas pernas de anão, imagino que tenha chegado rápido mesmo – ironizou – Ana! Zulka! Peguem o carro e descubram tudo o que preciso saber.

— E o meu problema, Gorro? - insistiu a cigana.

— Meu anjo, o país está em crise. Um novo circo pode ser a nossa ruína. Acredite, arrumar um marido não é a nossa prioridade. Agora vá!

Ana se lembra de que Zulka chegou a derramar algumas lágrimas, mas que se esforçou para não demonstrar fraqueza. Passaram o caminho todo em silêncio.

— Você pode conversar comigo se quiser – tentou a bailarina, enquanto estacionava o carro.

— Não quero!

— Mas, Zulka...Talvez fosse bom dividir essa dor...

— Quer mesmo que eu divida a minha dor, Ana? Então vamos lá! Minhas primas estavam quase convencendo Gorro a se casar comigo, já que nunca apareceu um pretendente de boa procedência. Seria bom não só para mim, como para toda a família, já que garantiríamos a linhagem. E o aconteceu? Você chegou!

Ana não disse nada, mas demonstrou insatisfação.

Os artistas do novo circo estavam na praça principal. Foi a primeira vez que Pedacinho do Céu juntou tantas pessoas felizes, depois da proibição dos jogos de azar, ocorrida no ano anterior. Havia muitos palhaços melando a criançada com tortas de chantilly; mágicos ensinando truques interessantes e adultos ganhando prêmios nas corridas de saco.

— Não querem participar? - perguntou um assistente de cabelos vermelhos e encaracolados, enquanto entregava um folheto.

— Ah, não! Obrigada! Viemos apenas dar uma olhadinha...Onde o circo vai ficar? - perguntou Ana.

— Há 4 km, na região do lago.

— Nossa! Um lugar privilegiado! - falou Zulka surpresa.

— Conseguimos alugar por um bom preço – justificou o rapaz, constrangido – Não deixem de nos visitar!

— Claro que não! Por quanto tempo ficarão?

— Pelo menos um mês. É tempo suficiente para todo mundo conhecer nosso trabalho, estou certo? - sorriu – Bom, meninas, meu nome é Marcus, qualquer coisa podem falar comigo, sou sobrinho de Tião, o dono do circo Blefuscu. Agora preciso ir, foi um prazer conhecê-las!

O rapaz estava bastante ocupado divulgando as atrações do circo.

— O que acha, Ana? Conseguimos informações suficientes?

— Acredito que sim – respondeu secamente, lembrando-se da confissão de Zulka.

— Ah, Ana! Me desculpe! É verdade que eu aceitaria me casar com Gorro, não por amor, mas porque quero ser esposa e mãe. Em nossa cultura, as moças casam com treze anos, olha só a minha idade!

— Eu sinto muito, Zulka... - lamentou com sinceridade – Você tem algum plano?

— Não tenho, mas quer saber uma coisa? Esse Marcus é muito bonito! - gargalhou.

— É verdade – sorriu

— E tem mais! É cigano!

— Tem certeza?

— Eu aposto! Quem me dera, Ana! Quem me dera me casar com um homem desse!

Ao retornarem, contaram tudo o que descobriram para Gorro, o que o deixou ainda mais inflamado de raiva.

O contexto, como eu disse no início desta história, não era um dos melhores. Pedacinho do Céu ainda estava de luto pelos nobres frequentadores do Hotel-cassino, que agora, em sua maioria, não passavam de devedores, falidos ou suicidas. A crise era perturbadora. Que saudades eles tinham da belle époque tropical!

Ana de Luz e o Circo da Alegria Onde histórias criam vida. Descubra agora