No dia a dia, o dono do circo gostava de se vestir com calça jeans, camisa de botão, botas e chapéu de cowboy. Raramente ia ao centro da cidade de carro, como costumava fazer quando ia visitar Ana de Luz. Seu passeio preferido era à cavalo.
Desde que havia chegado ao Brasil, o cigano abandonou muitas tradições dos Rosenlonks. Isso, obviamente, causou um grande desgaste na relação com as primas.
As senhoras da família exigiam que o homem voltasse a se importar com a espiritualidade, pois acreditavam que uma força maléfica o seguia. O problema era que o marido de Ana andava muito cético para cultuar os santos. Gorro tinha fé na própria força e disposição. As primas, já desesperadas com o futuro, apelaram para a padroeira dos ciganos, a Santa Sara Kali.
Numa tarde de sexta-feira, de 1947, Gorro e Zulka discutiam na frente de Ana sobre a desgraça da jovem cigana em chegar aos vinte e tantos anos sem ter se casado.
— Não aguento mais essa conversa, Zulka!
— Gorro! Você não me dá outra escolha!
— Eu já disse que não vou sair da cidade para ir atrás de um cigano legítimo e confiável que deseje se casar com você e morar por aqui. Isso leva muito tempo...Vou deixá-las sozinha? E ainda tem o circo...Esqueça!
— E eu já disse que preciso sair de Pedacinho do Céu enquanto sou nova! Não seja egoísta!
— Patrão, vim o mais rápido que pude! Chegou um novo circo na cidade! - interrompeu Badoque, o palhaço ruivo, ofegante.
— Era só o que me faltava! De onde são? Por quanto tempo pensam em ficar?
— Não sei, patrão! Mas acabaram de chegar! Estão lá no centro distribuindo folhetos e brinquedos. Quando vi, saí correndo para contar ao senhor!
— Com essas pernas de anão, imagino que tenha chegado rápido mesmo – ironizou – Ana! Zulka! Peguem o carro e descubram tudo o que preciso saber.
— E o meu problema, Gorro? - insistiu a cigana.
— Meu anjo, o país está em crise. Um novo circo pode ser a nossa ruína. Acredite, arrumar um marido não é a nossa prioridade. Agora vá!
Ana se lembra de que Zulka chegou a derramar algumas lágrimas, mas que se esforçou para não demonstrar fraqueza. Passaram o caminho todo em silêncio.
— Você pode conversar comigo se quiser – tentou a bailarina, enquanto estacionava o carro.
— Não quero!
— Mas, Zulka...Talvez fosse bom dividir essa dor...
— Quer mesmo que eu divida a minha dor, Ana? Então vamos lá! Minhas primas estavam quase convencendo Gorro a se casar comigo, já que nunca apareceu um pretendente de boa procedência. Seria bom não só para mim, como para toda a família, já que garantiríamos a linhagem. E o aconteceu? Você chegou!
Ana não disse nada, mas demonstrou insatisfação.
Os artistas do novo circo estavam na praça principal. Foi a primeira vez que Pedacinho do Céu juntou tantas pessoas felizes, depois da proibição dos jogos de azar, ocorrida no ano anterior. Havia muitos palhaços melando a criançada com tortas de chantilly; mágicos ensinando truques interessantes e adultos ganhando prêmios nas corridas de saco.
— Não querem participar? - perguntou um assistente de cabelos vermelhos e encaracolados, enquanto entregava um folheto.
— Ah, não! Obrigada! Viemos apenas dar uma olhadinha...Onde o circo vai ficar? - perguntou Ana.
— Há 4 km, na região do lago.
— Nossa! Um lugar privilegiado! - falou Zulka surpresa.
— Conseguimos alugar por um bom preço – justificou o rapaz, constrangido – Não deixem de nos visitar!
— Claro que não! Por quanto tempo ficarão?
— Pelo menos um mês. É tempo suficiente para todo mundo conhecer nosso trabalho, estou certo? - sorriu – Bom, meninas, meu nome é Marcus, qualquer coisa podem falar comigo, sou sobrinho de Tião, o dono do circo Blefuscu. Agora preciso ir, foi um prazer conhecê-las!
O rapaz estava bastante ocupado divulgando as atrações do circo.
— O que acha, Ana? Conseguimos informações suficientes?
— Acredito que sim – respondeu secamente, lembrando-se da confissão de Zulka.
— Ah, Ana! Me desculpe! É verdade que eu aceitaria me casar com Gorro, não por amor, mas porque quero ser esposa e mãe. Em nossa cultura, as moças casam com treze anos, olha só a minha idade!
— Eu sinto muito, Zulka... - lamentou com sinceridade – Você tem algum plano?
— Não tenho, mas quer saber uma coisa? Esse Marcus é muito bonito! - gargalhou.
— É verdade – sorriu
— E tem mais! É cigano!
— Tem certeza?
— Eu aposto! Quem me dera, Ana! Quem me dera me casar com um homem desse!
Ao retornarem, contaram tudo o que descobriram para Gorro, o que o deixou ainda mais inflamado de raiva.
O contexto, como eu disse no início desta história, não era um dos melhores. Pedacinho do Céu ainda estava de luto pelos nobres frequentadores do Hotel-cassino, que agora, em sua maioria, não passavam de devedores, falidos ou suicidas. A crise era perturbadora. Que saudades eles tinham da belle époque tropical!
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Ana de Luz e o Circo da Alegria
Chick-LitUma senhora, nascida em 1929, resolveu me contar sua história: uma infância solitária na mansão de tia Ofélia e uma juventude embevecida por um homem temido, vinte anos mais velho, dono do circo da cidade. Você vai se emocionar!