Capítulo Seis: Marte.

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 Vitória.

 Quando acordei, estava dormindo em cima de Ana Clara. Meu coração quase saiu do peito vendo ela ali, dormindo tão serena comigo nos braços. Seu cheirinho estava preso em mim e eu não sabia direito como ela foi parar ali. Lembro de ter um sonho ruim, de ouvi-lá cantar, de tudo então ficar fácil de flutuar.

 Meu pesadelo teria sido com Ana desistindo de nós. Desistido de Anavitória, de ter voltando pra faculdade de medicina, pro futuro certo que tinha, e que desistiu por mim. Pelo nosso sonho. Mal via a hora de voltar pra nossa casinha, estávamos numa cidadezinha que ficava algumas horinhas da capital, onde morávamos. Tava morrendo de saudade da cama, do meu quarto, das minhas plantinha.

 Quando eu e Ana entramos no pequeno ônibus horas depois, um dos seguranças veio falar conosco. Ele era novo, alto, e simpático.

 -- E ai meninas, cansadas? -- ele perguntou, se sentando no banco da fileira ao lado.

 -- Exaustas, morrendo de saudade da minha casinha -- Disse Ana, rindo.

 -- Cansa mesmo né? -- Ele encarou Ana, e então um nó se formou na minha garganta. -- Sem dúvidas é ótimo fazer show e tudo mais, porém saudade aperta, num é? Mó vontade de voltar pro cantinho de vocês.

 -- Sim, exatamente isso, Diego. -- Ela respondeu, empolgada no assunto. -- Mal vejo a hora de me jogar na minha cama, com meus travesseiros, minhas cobertinha.

 -- Vi que tá frio em Sampa viu, vai poder aproveitar suas "cobertinha" -- Ele riu, sem desviar o olhar dela.

 Aquilo me incomodou mais do que devia. Era óbvio que ele estava querendo algo com Ana. Seu olhar dizia isso. Ele nem tentava disfarçar, e tudo foi confirmado quando disse:

 -- Quer sair pra comer qualquer dia desses? -- Inclinou o rosto, fazendo um charminho patético.

 -- Ah... -- Ela riu. Arrumou o cabelo e encarou o chão com as bochechas rosadas. -- A gente pode marcar sim.

 "A gente pode o que, NaClara?" pensei, irritada. Ah, mas aquele menino não me descia. O que que tanto queria com Aninha? Mal a conhecia pra se dizer apaixonado, mal sabia a cor da alma dela, mal sabia das mania. Ele nem a conhecia pra chamar ela pra sair. Coloquei meus fones de ouvidos e virei o rosto, olhando a janela. Nem liguei mais para aquela conversa sem pé, nem cabeça.

 Lá pela terceira música, senti Ana apoiar a cabeça no meu ombro.

 -- Mal vejo a hora de ir pra nossa casa, Vi...

 -- É? -- falei, saiu mais irônico do que eu queria.

 -- Ê, Vitória, que que foi que tá com essa cara amarrada? -- Ela me olhou, como se tivesse provado algo azedo. -- Que que te fez perder a leveza, menina?

 -- Nada, Ninha, tô cansada. Esse ônibus num chega. -- Ri, disfarçando o ciúmes.

 Ela me encarou por longos segundos, tentando decifrar. Deu de ombros e se deitou de novo no meu ombro, se ajeitando. Depois de um cadinho de tempo, disse de repente:

 -- E você, Vi, quer ter filhos? -- A pergunta veio como facada no peito. Estava encruzilhada. Como olhar naqueles olhos e dizer que sim, e repetir os mesmos nomes que ela deu pros dela?

 Queria poder mentir pra ela, mas não conseguia. Aqueles olhos arrancava a verdade de qualquer um, o tom manhoso sabia conseguir as coisas. Mexi a cabeça, dizendo que sim, distraída demais para abrir a boca.

 -- Quantos?

 -- Dois, Ninha. Quero ter dois também. Um casal, igualzin tu. -- Falei, sorrindo e acariciando o cabelo dela. -- E uma pá de bicho. Quero gato, cachorro, passarinho e até mesmo peixinhos.

 -- Cê é menina de mato mesmo, né, Leãozinho? -- Ela abriu seu melhor sorriso e senti o peito derreter. Aquele era o sorriso que ela só dava pra mim. Que só eu conhecia. Que só eu tinha. Estava patenteado no meu peito como "Sorriso de Vitória".

 -- Eu sou bicho do mato mesmo, NaClara, cê sabe disso.

 -- Achei que era menina do céu, do universo, pra ter esses olhos cor de marte. -- Ela desviou o olhar, voltando a mexer no celular.

 Espera, ela acabou de dizer indiretamente que a música "Cor de Marte" é sobre mim? Me vi perdida. Já havia pensando na possibilidade, mas ela nunca falou sobre. Eu tinha certeza que era sobre mim por alguns shows e tudo mais, mas ouvir da boca dela era outra coisa.

 Eu que tinha Cor de Marte. E a melhor parte é que essa música falava do amor carnal da forma mais poética. Quando vi, saiu sem pensar:

 -- "Me prova, me enxerga..."

 -- "me sinta, me cheira, e se deixa em mim..." -- ela completou, sorrindo.

 -- Foi pra mim, Ana? -- Escapou, sem pensar, sem suavizar, com toda a rispidez da verdade impulsiva.

 -- É o que, Vi? -- Ela se sentou num salto.

 -- A música, NaClara, foi sobre mim? -- seus olhos pareciam em pânico e achei que seu coração iria explodir no peito, de tão alto que batia.

 Antes que pudesse responder, Diego passou por ela e a chamou.

 -- Aninha, quer? -- Ele ofereceu seu pacotinho de amendoim e o encarei séria. Justo agora, Diego?

 -- Eu quero. -- Ela pegou um punhado e colocou na boca.

 -- Cê nem gosta de amendoim, Ana. -- Eu falei e ela continuou a mastigar, rápida, com os olhos arregalados. Ela iria fugir da pergunta.

 O resto do caminho, ela conversou com ele. Parecia interessada em casa A que saia da boca dele, sem nem me olhar. Ao chegarmos em casa, correu pro banho e já se ajeitou pra dormir. Era 20h. Aninha nunca dormiu tão cedo.

 Era óbvio que me evitava, então eu só deixei. Deixei ela se acalmar, por as ideia nos eixos, pingar os i e se quiser, me responder. Deitei no sofá mesmo, vendo qualquer coisa que passasse na televisão.

 Meu coração batia de saudade de Aninha dormindo comigo, como na noite passada. Mas resmunguei com ele.

 -- Ela está nos evitando, não seja bobo. -- sussurrei pra ele. -- Sossegue e me deixe dormir.

 E assim, com TV ligada e ventilador na cara, eu dormi no sofá da sala.

Ana&VitóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora