Bônus: Parte de Nós.

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Ana.

Os cachos castanhos claros invadiram meu quarto e ele pulou na cama, me encarando com os olhos escuros. ele se arrastou até apoiar a cabeça no meu colo, me olhando com os grandes olhos que tinha. Os cachos estavam embaraçados e a cara inchada, tinha acabado de acordar. Ele faria 7 anos em alguns dias.

-- Bom dia, Solzinho. -- Sorri, penteando os fios enrolados com os dedos.

-- Bom dia, mamãe... -- Ele bocejou, preguiçosamente. -- Cadê a mãe?

-- Foi no mercado com a Lua, é aniversário dela hoje, lembra? -- As crianças tinham um acordo interno que Mãe era Vitória e Mamãe era Eu. Lembrei quando eles eram menores e só conseguiam resmungar "mama" e nós duas sempre ficamos confusas sobre quem eles queriam.

-- Ah, porque eu num fui junto? -- Ele fez um biquinho típico de Vitória, revirei os olhos.

-- Porque você estava dormindo, elas acordaram cedo para ir. -- Ele coçou os olhos.

-- Eu tô com fome.

Ri enquanto me levantei, sabendo que ele me seguia com os pés descalços. Descemos as escadas e fomos até a cozinha. Ele saltou no banquinho do balcão e sorriu exageradamente enquanto eu colocava o prato e um copo na frente dele. Fiz um sanduíche de pão com manteiga, servi o copo dele com suco, já que ele tinha alergia a leite. Encarei os dedinhos gordinhos segurarem o pão enquanto lembrava de como era quando ele ainda estava dentro de mim. Minha gravidez não foi fácil, ele teve algumas complicações. Os aparelhos auditivos nas orelhas refletiam a luz da janela. Ele tinha alergia a muita coisas e asma, para fechar o pacote. Mas nunca vi ele sem aquele sorrisinho nos lábios. Ele terminou seu café da manhã, e caminhou até a pia, subindo no banquinho e lavando o que sujou. O observei atentamente.

-- Sabe, a Mãe foi comprar seu presente também, já adiantando pro seu aniversário... -- Falei, deixando no ar e sentindo o sorriso brincar nos meus lábios. Ele pulou do banquinho ainda com as mãos molhadas da louça recém lavada.

-- O que é?? -- Davi sorriu, virando a cabeça num charminho fofo.

-- Ah, boatos que tu queria um ukulele igual o meu, dai.... -- Ele pulou vindo pro meu colo, me enchendo de beijos no rosto. -- Ei, calma ai, pequeno.

O barulho da garagem abrindo fez ele saltar do meu colo e correr para fora. Os pés daquele menino parecia ter asas, de tão veloz corria sem bater ou fazer som algum. Vitória adentrou a cozinha com ele já se enroscando em suas pernas.

-- Bom dia, raiozin de sol! -- Ela acariciou os cachos.

-- Bom dia, ViSol! -- Ana Lua sorriu, os cabelos lisos e pretos eram cortados em joãozinho bem curtinho, os olhos cor de marte eram um pouco mais avermelhados que os de Vitória. Da mesma forma que os cachos Davi eram alongados, os fios de Ana eram meio ondulados.

-- Feliz aniversário, NaLua! -- Ele abraçou a irmã apertado.

-- Olha, Mamãe! -- Ela chegou perto de mim, pulando e mostrando seus sapatos novos.

-- Mas já tá usando?? -- perguntei.

-- Eu falei que não era pra ela gastar essas chuteiras tão rápido, mas quem disse que a teimosia ai me ouve... -- Vitória revirou os olhos com um sorriso brincalhão.

-- O que tu tá querendo insinuar com isso? -- Estreitei os olhos, me divertindo com a provocação dela.

Ana Lua ainda exibia seu mais novo par de chuteiras. Essas eram azul e laranja, ela era do time titular da escola, uma atacante de destaque. Ana sempre foi envolvida com o esporte, apaixonada pelo espírito competitivo e uma ótima adversária. Lembrei que ficamos de comprar uma prateleira nova para o troféu do estadual.

Davi teve o melhor sorriso da vida dele quando Vitória entregou o ukulele nas mãozinhas dele. Ele abriu ansioso, sentando no chão mesmo, e sorrindo. Me olhou como quem pedisse ajuda e eu logo me prontifiquei. Ele sabia alguns acordes. Indiquei a ele uma sequência fácil que ele gostava: Me Namora, do Edu Ribeiro. Dois acordes. Ele logo começou a tocar, balançando a cabeça e sorrindo, feliz demais com seu brinquedo novo.

Abracei Vitória, sentindo ela beijar minha testa. Encaramos os dois, os dois pedaços de nós, em sua completa plenitude. Davi criava sua aura mágica sentado no chão e Ana Lua se divertia apenas em vê-lo. Logo, os dois correram pro gramado do quintal, ela logo aprontando sua bola para fazer embaixadinhas com a mais nova chuteira, e ele se sentando no último degrau da varandinha, tocando acordes aleatórios e alguns inventados. Ana sorria empolgadamente, batendo na bola e dominando ela como podia, valia tudo, joelhos, ombros, cabeças, peito. Vitória estava comigo na batente da porta da cozinha.

Encaravamos aquilo com o mesmo sorriso de sempre: orgulhosas e apaixonadas. Tinha um pouco de nós em cada um deles, tinha nós na habilidade de Ana em esportes, tinha nós no silêncio que Davi ouvia sem seu aparelho auditivo. Tinha nós em toda individualidade deles. E tinha nós nos olhos, nos cachos, nos sorrisos e nos viveres. Os dois apaixonados pela vida e pela natureza, do mesmo jeito que eu era apaixonada por Vitória e Vitória por mim.

-- Sentado "Na Lua"... -- Vitória sussurrou para mim, fazendo referência ao apelido da nossa filha.

-- Eu "Vi Sol". -- Completei, olhando de Davi para ela.

E me perdendo lentamente naquele sol dos olhos dela.

Ana&VitóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora