Verso 17

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Oh, Ana Júlia

Ana Júlia achou que tinha sofrido o suficiente para a vida inteira enquanto assistia o rosto aflito da irmã. Pensou que toda a dor e sofrimento tinha ficado no passado, um passado que iria sumir a partir do momento que ela saísse da delegacia e declarasse aquele fatídico acontecimento morto em sua vida. A garota fora inocente o suficiente para achar que "o pior já tinha passado". Mas, o que nunca contam para as pessoas quando o assunto é assédio sexual ou seus variações ainda piores, é o futuro de uma garota que passa por essa situação. É automaticamente deduzido que tudo terminou bem, já que o momento de terror ficou no passado; as pessoas pensam: "Ah, provavelmente a garota passou por um tratamento com psicólogo e depois seguiu sua vida", porém, as coisas não funcionam muito bem, na verdade o buraco é mais embaixo e bem mais complicado.

O que não contam é a consequência que um assédio causa em toda a família da vítima, aquela dor tão grande quanto ser invadida sem seu consentimento. Ninguém contou para Anajú que ver sua irmã Luísa sofrendo em silêncio, pensando naquela criança que crescia em seu ventre – sofrendo antecipadamente caso nascesse uma garota que pudesse futuramente passar pela mesma coisa da irmã e sofria por pensar que se fosse um garoto ela poderia não ser forte o suficiente para cria-lo bem e ele se tornaria uma pessoa sem coração que acharia que mulheres são apenas objetos. Mesmo a mão de Bernardo entrelaçada aos dedos de Luísa, nada parecia acalma-la. As irmãs queriam somente passar o resto da vida na cama, uma abraçada a outra e se protegendo do mundo exterior, que de alguma forma poderia destruí-la.

Ninguém comentou com Ana Júlia que, mais do que ver sua irmã sofrendo, ela morreria por dentro ao ver a reação de Bruno, Monalisa e Agnes. Toda a dor silenciosa de Luísa e Bernardo e o ódio estampado nos olhos de Mozart, mas não expressados, não se comparava a dor e raiva que borbulhava no corpo do irmão de Ana Júlia.

Bruno, assim que ficou sabendo o que aconteceu com sua irmã mais nova, aquele que ele queria guardar em um potinho para que nunca crescesse e amadurecesse, a garotinha que ele ajudou a cuidar, viu todas as suas fases (tanto de crescimento quando amadurecimento), passou com ela pela pior – que não era tão parecida com o pesadelo que estavam vivendo – e pelo melhor.

Os olhos escuros da amiga de Ana Júlia, Agnes, expressavam um enorme arrependimento misturado com culpa. A garota não entendia porque tinha confiado em um completo desconhecido quando sua amiga estava visivelmente ruim. Não entendia o porquê de ter animado ir para aquele happy hour. Agnes se sentia suja, como se tivesse compactuado com aquele desconhecido a fazer algo com sua única amiga. Sentia-se culpada por ter sido a causadora daquilo, se ela não tivesse chamado sua melhor amiga para sair nada daquilo teria acontecido, elas ainda estariam juntas sem nenhum sentimento de culpa entre elas – somente a tristeza pelo coração partido de Ana Júlia (que naquele momento era algo muito melhor do que a dor do assédio).

A solução para todos os problemas parecia que seria quando Ana Júlia fosse finalmente prestar queixas na delegacia. Com seu irmão ao lado esquerdo e Bernardo no direito, ela entrou confiante que aquilo seria um ponto final em todo sofrimento, que quando saísse daquele lugar estaria livre para poder fechar aquele livro de dor e que todos ao seu redor fariam a mesma coisa que ela. Mas, mais uma vez, Ana Júlia fora enganada ao achar que aquilo seria fácil, libertador ou tranquilizador. A verdade é que aquelas horas eternas que ela passou de frente a um cara nojento, em cima de uma cadeira dura e sentindo vontade de chorar e gritar a cada pergunta humilhante que era obrigada a responder, serviram como mais areia naquele caminhão já lotado. Ao invés de ser um passo para esquecer o futuro, foi mais como dez passos para trás para se lembrar de cada detalhe horrível daquela noite e ainda ter sua palavra como dúvida.

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