Verso 14

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Você vai estar com um cara, um alguém sem carinho

           

Tudo passou a ficar estranho após o primeiro gole, aquele pequeno e matador gole que não pareceu suspeito para a garota, o gole que Ana Júlia deu somente para corresponder às expectativas do menino de olhos escuros. Bebeu um gole que desceu rasgando e depois deixou a garrafa de vidro em cima da mesa, abandonando-a e voltando a beber sua água com gás. Podia ter esquecido a ordem da irmã, mas ela tinha seus limites – e quando decidia que não beberia aquela noite, era porque ela definitivamente não iria beber, no máximo um gole, que foi o que ela realmente tomou e o suficiente para ferrar com a cabeça de Ana Júlia.

O que Ana Júlia não sabia era que um único gole daquela bebida envenenada era o suficiente para começar a ver tudo a sua frente de forma embaçada – de um jeito que ela nunca tinha enxergado antes -, para sentir um gosto muito ruim e estranho na garganta, que causava um bolo de enjoo na boca do estômago e a parar de entender o que o garoto ao seu lado falava. Anajú sentia como se estivesse fora de seu corpo. Ela estava sentada na cadeira de plástico, entre Agnes e o garoto, mas parecia que alguém tinha colocado uma bigorna de 80 quilos nas suas pernas, o que impossibilitava Ana Júlia de levantar e andar sozinha. Mas, ao mesmo tempo, a garota sentia como se estivesse flutuando, rodando pelo céu e ouvindo tudo que todos falavam e pensavam, ela sentia vontade de rir dos pensamentos bestas da amiga ao lado e dos indecentes do garoto.

Mas seu corpo estava pesado demais, pesado o suficiente para ela encostar os braços na mesa a sua frente e deitar por cima deles, pronta para tirar um cochilo até dar o horário que Agnes quisesse ir embora.

Ao abaixar a cabeça e ignorar as vozes que chamavam seu nome do lado de fora da sua bolha de realidade, ela sentiu uma forte pontada na bexiga, como se o xixi implorasse para sair – e se ela não fosse ao banheiro iria fazer xixi ali na cadeira mesmo, pagando um enorme mico.

- Preciso fazer xixi – Ana Júlia disse para Agnes. Ao mesmo tempo que as palavras saíram da sua boca, ela sentiu uma enorme vontade de rir porque não parecia ela mesma. Sua voz no seu ouvido estava diferente, mais aguda, parecendo aquele efeito do SnapChat que afinava a voz da pessoa.

- Eu te levo – Agnes respondeu e Ana Júlia riu mais uma vez. A voz dela estava mais grossa e mais distante, parecendo de outra pessoa. Sua amiga tinha uma expressão esquisita, a testa estrava franzida por não entender o que acontecia com a amiga, mas aquilo só causava mais risadas em Ana Júlia.

- Não precisa se incomodar, eu levo – uma voz desconhecida soou logo atrás dela. Diferente da voz dela que estava fina e da voz de Agnes que estava grossa, a voz desse garoto parecia normal, grossa e potente, mas ao mesmo tempo sinistra, causando uma série de arrepios em Anajú.

Ela sentiu uma mão rodeando seu antebraço e seu corpo se levantando automaticamente. Não parecia que ela estava comandando seu próprio corpo, mas se sentia como se fosse um fantoche que estava sendo controlada por um espírito invisível, por alguém que definitivamente não era ela. Ana Júlia reparou no olhar preocupado de Agnes, mas mandou um sorriso tranquilizador para a amiga, tentando dizer que estava tudo bem. Afinal, ela estava se sentindo maravilhosamente bem, então não tinha nada de esquisito em ter bebido um gole pequeno de cerveja e sentir como se tivesse bebido um calmante que a fazia flutuar.

Ficou distraída olhando para a amiga que não reparou aonde estava indo. Agnes a acompanhou por alguns segundos, mas Ana Júlia a acalmou com seu sorriso feliz no rosto. Quando olhou para frente de novo, após Agnes relaxar e voltar a conversar com a garota ao seu lado, reparou que não estava indo para o banheiro.

A verdade é que ela nem ao menos sabia o caminho do banheiro, mas tinha certeza que aquele lugar escuro não fazia parte do bar aonde estavam. Eles já não estavam mais no local cheio de bares e restaurantes, agora estavam em uma área completamente escura, com muitas árvores e poucas pessoas - somente um ou outra casal que não se preocupavam com aqueles dois que chegavam naquela área.

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