Capítulo 1 - Vida que segue

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No banheiro minúsculo do trailer, o bastão de plástico me encara de sobre a pia. Somos velhos conhecidos. Tivemos alguns encontros secretos nos últimos meses. Minha mão está tremendo quando pego o pequeno objeto branco e saio para o enorme set a céu aberto montado ao lado de Teatro Nacional.

Gravar em Brasília era aquela mistura de sonho e pesadelo. Estar perto da família facilitava a logística e ainda reduzia o stress. Era muito mais fácil enfrentar as cobrinhas de Hollywood com meus primos por perto na hora do jantar.

Saindo do trailer, poucos técnicos andavam de um lado para o outro carregando cabos e materiais que nem tentava adivinhar do que se tratavam. Os detalhes de uma super-produção fugiam do meu limitado conhecimento da indústria do cinema, meu departamento era outro. Foram seis meses lutando pela liberação para as gravações na área tombada da capital brasileira. Autorizações federais e distritais se acumulavam numa burocracia que estrangeiro nenhum seria capaz de entender. Agora, com todo o resto do filme gravado há quase um ano, finalizávamos as externas passadas no Eixo Monumental e outros pontos chaves no prazo ridículo de duas semanas. O estresse da equipe era palpável, mas naquele momento eu só pensava no quanto precisava encontrar o meu marido e no quanto isso seria difícil por não saber exatamente em que locação as cenas estariam sendo rodadas naquela tarde. 

Saí meio sem rumo, levantando os pés para ver o mais longe possível, torcendo para estarem terminando a tomada no Conjunto Nacional que era a mais perto prevista para aquele dia. Claro que ele não atendeu ao celular, afinal, ele tocou no meu bolso quando tentei. Mal dei dez passos quando uma voz muito conhecida me chamou.

_ Minha linda, não adianta levantar os pés, você continua pequena, não vai ver muito longe. Hobbits não têm visão élfica.

_ Nossa que engraçado, Josué. Piada novinha!

_ Admite que estava com saudade de mim. - declarou e abriu os braços. Corri para entrar naquele carinho de que precisava tanto.

_ Só um pouquinho. Chegou agora?

_ Só deixei os meninos na casa da sua mãe e vim direto. Agda ficou lá com eles. 

_ Deu tudo certo?

_ Sim. Estaremos prontos para abrir no fim do verão. Nossa editora vai virar realidade, gata.

Desde o lançamento do meu último livro, essa ideia estava martelando nossas cabeças. Uma editora própria era um passo gigantesco. Só tivemos coragem de levar adiante conversando com novos autores brasileiros e percebendo toda a dificuldade do mercado nacional. Montar a sede em Los Angeles e um escritório em Brasília faria toda a diferença para movimentar as coisas. Estávamos ambos mais que empolgados com o projeto que, depois de mais de dois anos, finalmente estava saindo do papel. 

_ Que bom! Estou doida pra ver o prédio pronto. Agora preciso achar o meu marido. Viu alguém da equipe enquanto vinha para cá?

_ Sorry, não. Não vi seu bofe. Espera um pouco, logo está todo mundo de volta.

_ Quero falar com ele agora.

_ Mesmo que o encontre, ele vai estar gravando. Que agonia é essa?

_ Me deixa, Josué. Vai lá para o trailer, a gente já se fala.

Acabou sendo fácil descobrir que a equipe estava filmando num complexo de hotéis ao lado da Torre. Adorei escrever aquela cena e foi uma delícia ver a gravação de Jerko e Sol tentando combater o dragão que só podia ser visto pelo povo de Mihaz, mas poderia destruir construções e matar pessoas queimadas ou pisoteadas. Angie e Jay atiravam flechas de borracha no ar com os rostos cobertos de maquiagem que imitava fuligem. Assisti com o coração na mão quando ele saltava de uma marquise a mais de 4 metros de altura com cabos e um colchão enorme embaixo. Mesmo assim, preferiria que um dublê fizesse aquilo. Mas Jay Hite estava ficando conhecido por dispensá-los na maioria das cenas, o que me causava mini-infartos a cada gravação e fazia crescer o respeito do público pelo ex-ator teen.

A autorização para o hotel nos deixar fazer as cenas lá foi um capítulo à parte na via crucis da papelada e bajulação que cercaram conseguir que essa gravação acontecesse no meu país natal. Chegamos a cogitar construir uma mini Brasília em estúdio, quando finalmente vencemos o último obstáculo burocrático e marcamos a viagem. Continuava assistindo toda a ação ao lado de James, que encerrou a tomada algum tempo depois. Nem dava para disfarçar a exaustão dos atores. Morria de pena, mas o diretor garantia que esse cansaço verdadeiro faria a diferença na tela.

Jay se aproximou de mim, ofegante. Trocamos um beijinho discreto e antes que eu tomasse fôlego para pedir uma conversa em particular, Bela o chamou de longe.

_ Preciso da sua ajuda, Jay. Oi Aurélia!

Depois da cena patética no restaurante da Patti, acabei me sentindo na obrigação de convidar a moça para trabalhar no segundo filme da série. Era um papel pequeno, uma personagem guerreira que aparece no meio do segundo e morre logo no começo do terceiro livro. A cena do hotel era a maior dela e acho que ia pedir para passar tudo mais uma vez com ele.

_ Se importa, amor?

_ Claro que não. Vá ajudá-la. - claro que era mentira. Já estava de saco cheio das interrupções e o queria por alguns minutos para mim. Não acho que fosse pedir demais. Mesmo assim, dei um sorriso forçado e o deixei ir. Usei a mesma carona para voltar ao set. Outra cena seria rodada no teatro quando o sol estivesse se pondo e eu queria acompanhar os preparativos. 

Já cheguei discutindo com Natalie, a nova diretora de elenco, a respeito do uso de figurantes na cena em que Sol escala o Teatro Nacional pelo lado de fora. A coisa teria que ser feita em questão de minutos para aproveitar a luz enquanto o sol se punha logo atrás do prédio, por isso divergíamos a respeito da quantidade de pessoas a serem usadas na gravação e quantas seriam inseridas depois. Perdi por não dar a importância que devia. A cabeça estava em outro lugar. Josué logo percebeu.

_ Problemas no paraíso?

_ O paraíso está excelente, como sempre. O inferno da minha mente é que não para de me tirar o foco.

_ Quer um café? Geralmente isso é sono.

_ Adoraria, mas é melhor não.

_ Por que não?

_ Não quero me entupir de cafeína. Sou obrigada agora? Que saco!

_ Não é obrigada a nada, ô malcriada! Só te ofereci um café! Tchau! - disse e saiu pisando tão duro quanto era capaz.

Suspirei frustrada e voltei ao trailer. Precisava escrever, colocar as ideias em ordem. Já estava chateada com duas das minhas pessoas favoritas. Não foi assim que planejei esse dia.

Cochilava em frente ao notebook quando Josué abriu a porta de uma vez, entrando apressado já sem nenhum resquício de irritação.

_ Por favor, não me conta por que você dispensou o café! - Josué tinha o maior sorriso que já vi naquele rosto. Sorri também.

_ Não vou contar.

_ Certo, porque não é justo eu saber antes do bofe.

_ Não é. E você não vai saber antes dele. - ambos tínhamos os olhos marejados.

_ Posso te abraçar? - perguntou antes de me agarrar até me tirar do chão - Ah, meu Deus, eu não devia ter te apertado assim, desculpa!

_ Deixa de exagero! Não estou morrendo. Só estou... nada. Não te contei nada, então não tem nada acontecendo. - rimos juntos e ele me fez um carinho no cabelo. Abracei -  o mais uma vez naquele aconchego que só meu melhor amigo era capaz de dar.

Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora