Capítulo 19 - Em carne viva

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Ele me atendeu com voz de sono e senti meu coração apertar. Era uma sensação comum nos últimos dias.

_ Hey babe, como está tudo aí? - perguntei num tom quase infantil.

_ Tudo indo, amor. Ela fez um cateterismo hoje e amanhã vai ser aplicada mais uma medicação forte. Há o risco de efeitos colaterais sérios. Vamos torcer para ficar tudo bem.

_ Vamos. E você, como está?

_ Lidando. Fazendo muita força para não desmoronar enquanto tem gente precisando de mim. - pude ouvir o sorriso exausto na voz.

_ Imagino. Queria estar com você. Nós funcionamos melhor juntos.

_ Isso é verdade. Mas não faria sentido tirar você de casa. Devo estar de volta até o fim da semana que vem. Fica aí e segura as pontas em casa. Os meninos estão bem?

_ Sim. Andaram ocupados com os trabalhos na semana, mas a Marie os ajudou com um cronograma e hoje estão de folga. Brincaram com o Thor e jogaram video game o dia todo. Devem estar com saudade de você.

_ Duvido. Eles não sentem mais nem de você.

_ Precisa jogar na cara? No fundo, acho que eles sentem; só querem construir a reputação de durões. Faz parte do espetáculo.

_ Faz. Eu devo ter tido essa fase também. Pode ser que ela tenha durado um pouco demais. - a voz dele falhou.

_ Não ouse se sentir culpado. Você sempre foi um excelente filho. Muito melhor do que ela merece.

_ "Ela" é a minha mãe. Podemos mudar de assunto? Não quero discutir com você. Queria desabafar, mas já vi que vai ser impossível. - ele estava frustrado e eu também.

_ Vou levar os meninos para jantar agora. Podemos fazer um Skype quando eu voltar?

_ Pode chamar. Estou meio morto, mas vou tentar ficar acordado.

_ Deixa, amor. Vai descansar. Eu te ligo quando acordar amanhã. Se conseguir, a gente conversa por video. Dou um beijo nos meninos por você.

Ele respondeu com um "certo" pouco convicto e cheio de cansaço. Desliguei com um nó crescendo na garganta e dei de cara com o olhar de Josué, que nem tentava esconder que me observara durante toda a conversa.

_ Você tentou. Agora vamos, estou morrendo de fome. - agradeci por ele não insistir no assunto.

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A segunda-feira chegou com uma chuva fria e céu cinzento. Acordamos todos atrasados e o café da manhã preparado por dona Fátima foi tomado no carro, a caminho da escola. Cheguei à casa de DD logo depois da 9h e o homem me recebeu ainda de pijama.

_ Esperava que você cancelasse hoje.

_ Por que eu faria isso?

_ Vi na imprensa, algo sobre doença na família atrasar as gravações, logo...

_ Ah, sim. Minha sogra está mal, Jay está com ela. Mas minha vida continua bem aqui, onde estamos. Então sem preguiça, senhor Dixon, temos sua história a contar. - respondi entrando na casa e começando a ligar o notebook na mesa.

_ Alguém já disse que você é um pouco assustadora?

_ Estou no meu segundo casamento, é claro que sim. E aceito uma caneca gigante de café, por favor.

_ Sim, senhora. Só o café?

_ Só ele por enquanto. - Lancei um sorriso simpático ao homem antes que me permitisse liberar todo o mau humor em cima dele. Lembrei-me da lição de tia Rose que dizia que se pode falar qualquer barbaridade desde que um sorrisinho fosse dado ao final da frase. Isso realmente funcionava.

Depois do café, a conversa começava a fluir melhor e ele me contava da adolescência das filhas, época em que começou a sentir a necessidade de agir como um adulto responsável.

_ Elas começaram a questionar o meu comportamento, queriam que eu ficasse mais em casa, implicavam com a moto, queriam data de início e fim das turnês. Eram mais mandonas que a mãe delas. Na verdade, eram mais mandonas que a minha!

_ Você tem ideia de onde veio tudo isso? Essa obsessão por controle e ordem.

_ Não faço ideia. Deve ser aquela coisa da rebeldia. Como a mãe dela e eu éramos livres, nem ligávamos para a maioria das regras que descabelam os outros pais, elas resolveram ser do contra.

_ Mas você cogitou mesmo deixar o mundo da música?

_ Pensei no caso. Era o fim dos anos 90. Estava cansado, a banda brigava o tempo todo. Comecei a questionar se valia mesmo a pena. Além disso tudo, elas foram o principal motivo.

_ E o que te fez ficar?

_ Queria muito poder te contar que tive uma epifania num momento mágico de palco, mas não foi isso. Passei três meses em casa me recuperando de uma cirurgia nas cordas vocais. Duas meninas, aos 15 e 16 anos são muito mais difíceis de lidar que cinco músicos bêbados. Nunca mais pensei no assunto. Nem quando a mãe delas se foi, algum tempo depois.

_ Eu li sobre o acidente. Quer me contar a respeito?

_ Ela estava na San Gabriel. Gostava de ficar sozinha em pousadas retiradas. Normalmente fazia isso quando estava chateada comigo. Nos últimos tempos, era assim que ela ficava o tempo todo. Entenda, tínhamos um relacionamento aberto, um não se metia na vida sexual do outro há muito tempo, então eu não tinha ideia do que a incomodava tanto. Também não sei por que ela resolveu sair de lá no meio da noite. Eu estava num hotel do Tennessee, pelado entre duas meninas com metade da minha idade quando a notícia chegou. O carro rolou precipício abaixo e terminou dentro do mar. Deve ter sido a única vez em que me senti envergonhado por alguma coisa que fiz no quarto. Quebrei tudo o que estava ao meu alcance, vi de relance as garotas saindo, amparadas pela minha assistente. Depois de gritos e quebradeira, me agachei no chão e chorei feito criança. Só então, Lucas, o nosso baixista, me abraçou e eu fiquei ali, em posição fetal, nu e agarrado ao meu amigo de infância, implorando que alguém dissesse que não era verdade, fazendo promessas a todos os deuses para que aquilo fosse um engano. Depois de muito tempo, perguntei pelas minhas meninas. Qualquer pai decente teria procurado por elas primeiro, depois pensado em si e na própria dor. Eu não fui esse pai. Naquele momento eu entendi do que elas reclamavam tanto quando eram mais novas. O problema nunca foi a música, a moto, nem a falta de horário para dormir. O problema era que elas não estavam em primeiro lugar. Fui um pai e marido negligente e egoísta quase a vida toda; achava que pagar as contas e aparecer com elas nas matérias de revistas era mais que suficiente. A verdade, é que nos palcos eu era "o cara", mas como um cara, eu era um merda.

_ Você sentiu algum tipo de culpa pela morte dela? - odiei fazer essa pergunta. O cara estava desmoronando bem na minha frente, mas não voltaria àquele assunto depois.

_ Senti culpa por tê-la feito sofrer muitas vezes. Por tê-la convencido a adotar um estilo de vida que nunca quis, por fingir que não notava o quão mal ela ficava quando transava com um desconhecido só para cumprir o nosso acordo e agir como se estivesse aproveitando. Por nunca ter me interessado pelos poemas e pinturas, projetos sociais e a dezena de cursos que ela fez tentando se descobrir. Hoje eu percebo que tudo o que ela queria era ser amada e que eu tivesse orgulho dela. Isso ela só conseguiu depois que se foi. - toquei o joelho dele, tentando passar algum conforto. Ele se levantou e andou pela sala. _ Encerramos por hoje. Amanda vai te ligar para marcarmos de novo. - ele disse e saiu da sala. 

Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora