Capítulo 22 - Palavras e comida

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Entrei no chuveiro sentindo as lágrimas brotarem e se misturarem às gotas que caíam do chuveiro. Sentada no chão de mármore do box, sacudia o corpo em soluços que não estava disposta a explicar a ninguém. Passei uma boa meia hora ali, até me sentir anestesiada de novo e descer usando o hobby, com o cabelo ainda molhado para encontrar Jay na mesa de jantar. Ele me abraçou pela cintura e me deu um beijo delicado e cheio de saudade.

_ Desculpa eu ter sido um idiota. Só queria brincar com você.

_ Está tudo bem, amor. Só nunca gostei de levar susto  e esse me deu até dor de cabeça. E não te esperava aqui hoje.

_ Decidi voltar mais cedo. Tinha gente o suficiente lá e minha prioridade está aqui.

_ É muito bom ouvir isso. - respondi e me pendurei no pescoço dele, sentindo o peito apertar de novo. - Os meninos já te viram?

_ Sim. Entrei lá e eles me deram uns 20 segundos de atenção até eu mandar os dois para a cama.

_ Poxa, eles deviam estar mesmo com muita saudade. Eu recebo uns 5, no máximo. Acho que vou ter que pedir uns conselhos à minha mãe.

_ Pede à minha.

_ Não. Vamos jantar agora, que é melhor.

Depois de comer um pouco mais do que precisávamos, continuávamos à mesa, quebrando os biscoitinhos da sorte, encarando os papéis retangulares que saíam de cada um deles. Nossos olhares se cruzaram por um instante e senti a necessidade de romper o silêncio. Antes que falasse alguma coisa, ele passou na minha frente.

_ Acho que devíamos fazer a festa de aniversário dos meninos. Faltam duas semanas, dá tempo de fazer uma coisa bacana. Talvez isso ajude na comunicação. 

_ É, talvez. Pode ser uma boa. 

_ Quer dizer, a gente tinha combinado não fazer porque ia ser complicado, mas agora não há nada que impeça.

_ Entendi, Jay. Você tem razão, não há mais nada que impeça a festa dos meninos. Estamos todos bem, não há ninguém precisando de cuidados especiais e nem de repouso. A festa é uma excelente ideia - saí da mesa, retirando os pratos. De costas, colocando tudo na pia, apoiei o punho cerrado na bancada e engoli em seco.

_ Meu bem, se for o caso, não temos que fazer nada. Pelo amor de Deus, conversa comigo, eu não sei mais como agir. Vivo me contendo para não falar uma bobagem.

_ Não há motivo para se conter. Eu estou bem, nós todos estamos bem. Aconteceu algo ruim, mas isso não vai definir a nossa vida, nem a nossa família. - engoli mais uma vez, normalizando a voz. - A ideia da festa foi fantástica. Podemos aproveitar que eles estão completando 11 anos e fazer com o tema de Hogwarts. - ele enxugou uma lágrima que fingi não notar e concordou.

_ Ótimo. Não vou ter muito tempo esses dias, mas acho que a Paula consegue te ajudar.

_ Claro. São só alguns telefonemas. Nada novo. 

_ Excelente. E, olha, juro que não quero parecer neurótico, mas não acha que seria bom conversar com alguém? Desabafar pode te fazer bem. Eu mesmo tenho feito isso.

_ Não há o que conversar, estou ótima e logo vou estar maravilhosa. - garanti dando mais um beijinho nele. - Melhor subirmos. Você deve estar exausto e é tarde.

Mal nos aninhamos e percebi a respiração dele mudar para o modo sono profundo. Sempre invejaria sua capacidade de apagar assim que coloca a cabeça no travesseiro. Por outro lado, eu não sentia nem sinal do sono que devia estar presente àquela hora. 

Voltando a vestir o hobby, saí do quarto para não atrapalhar o sono de que ele parecia precisar tanto. No escritório, comecei a brincar com uns rascunhos velhos e post-its coloridos no quadro de cortiça que não usava há um tempo.

As imagens iam se formando na minha mente e logo eles vieram me fazer companhia. Personagens novos, misturados a antigos, recantos ocultos que nem eu conhecia ainda, aventuras revividas por outros pontos de vista, descobertas surpreendentes. Sol, Jerko, Chiro, crianças guerreiras numa ilha ensolarada, localizada no extremo norte de Mihaz, liderados pela pequena chefe de olhos negros e poucas palavras, que acabava de decidir ajudar o exército contra a rainha rebelde e proteger os que não poderiam lutar. A pequena trabalhou duro, construindo os abrigos junto com seu pequeno povo, guiou o povo até ele e foi para a batalha em seu corcel negro, aniquilando inimigos com três vezes o seu tamanho. Destemida, a pequena conteve o General e o levava prisioneiro até a Governadora Gwynther, quando foi atingida pelas costas por uma lança afiada e tombou em campo de batalha. Ficou ali, entre os muitos mortos de ambos os lados, esquecida, até que um dos soldados-rasos encontrou seu corpo, enterrado com honras em seguida, embora seu próprio povo tenha afirmado que ela detestaria a homenagem. Costumava dizer que não havia por que enfeitar e honrar um pedaço de carne, não importava o quanto o defunto tenha sido importante ou amado em vida. A pequena guerreira passou milênios em descanso na parte mais alta do campo, enterrada sob pedras polidas, onde se podia ler: "Curta vida, grande missão."

O sol entrava pelas frestas da janela fechada, e só o notei quando um raio  mais atrevido refletiu um papelzinho especialmente rosa. Suspirei e sorri para o resultado do trabalho febril na madrugada. Parte de mim estava naquelas palavras e naquela bagunça. Sempre ficava algo meu nas histórias e, dessa vez, eu soube exatamente que parte era essa.

Aos primeiros barulhos da casa, saí do meu abrigo e encontrei meus homens na cozinha. Jay fazia panquecas e os meninos brigavam por causa de alguma bobagem que não fiz força para entender, mas acho que se tratava da quantidade de blueberries no prato de cada um. Passei por eles e fui até a bancada do fogão abraçar o melhor cozinheiro de panquecas do mundo, que demorou o tempo de tirar a frigideira do fogo para retribuir. Fiquei ali, aconchegada no peito sem camisa até escutar a reclamação dos meninos que esperavam pelo café da manhã.       


Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora