Capítulo 32 - Sala de Aula

92 15 17
                                    

No primeiro dia de projeto, estava nervosa como poucas vezes me lembro de ter estado. Cheguei uma hora antes, preparei a sala, colocando as carteiras em círculo, tomando cuidado para não forçar o braço que havia acabado de se livrar do gesso e ainda doía a qualquer esforço. Recebi de Leslie, uma garrafinha com o nome e a logo da ONG "Better Way". Escrevi no quadro verde, todo o esquema com a estrutura de conto e arco de personagem, além de algumas recomendações de livros. Era uma boa maneira de começar. Eles chegaram acompanhados de Leslie e tomaram seus lugares, mantendo os olhos em mim. O sorriso havia congelado no meu rosto e eu torcia para eles não notarem o meu pânico.

Como qualquer professor que espera ganhar tempo, comecei pelo quebra-gelo mais manjado da história da pedagogia.

—Pessoal, nós vamos estudar juntos esse pelas próximas semanas até o verão. Meu nome é Aurélia, sou escritora há vários anos e quero conhecer vocês. Contem a idade, o que gostam de fazer e por que querem aprender a escrever melhor. - eu tinha o meu sorriso de menina docinha que fazia a bochecha doer.

Eles me olhavam com um ar de desdém que me fez desconfiar que meu espanhol pudesse estar enferrujado demais. Um garoto bochechudo, com cabelos espetados e lisos levantou a mão para começar, mas antes que começasse, uma menina morena com um coque alto preso nos cabelos pintados de azul, o interrompeu.

— A gente sabe quem você é. Há semanas a Leslie fala da grande estrela que viria nos ensinar. - a menina declarou com ironia.

— Eu não sou uma grande estrela e tenho certeza que podemos aprender muito juntos - respondi com toda a sinceridade. Nunca me senti confortável sendo tratada como alguém especial.

—Aham. Então, nesse caso, sou a Julia. Tenho 15 anos e gosto de contar histórias para os meus primos pequenos. Minha avó acha que levo jeito para escrever.

—Muito prazer, Julia. - respondi e apontei para o garoto que continuava com o braço erguido.

—Eu sou o João. Tenho 13 anos e gosto de escrever poesias. Gosto de andar com o meu cachorro, jogar video game e ler gibi e filmes da Marvel.

Ele foram se apresentando assim, um depois do outro, sem grande empolgação. Era quase como se tivessem sido obrigados a estarem ali. Até deu para entender Leslie, afirmando que a turma seria um teste, por isso haveria poucos alunos. Em comparação aos meus 10 alunos, meu pai cuidava de uma turma com 25, e ainda tinha fila de espera. Parece que o desinteresse pela literatura era um fenômeno mundial. Um garoto moreno, com 17 anos, mal grunhiu o próprio nome, Marcos. Maria e Marta, irmãs de 14 e 15 anos, recém chegadas de Porto Rico. Em seguida, um menino de olhar desconfiado, cabelos lisos e pretos, pele morena e visivelmente acima do peso, levantou a mão e se identificou como Lucas, o único brasileiro da turma, com 16 anos. Logo depois dele, Ana, uma menina miúda e delicada, usando uma trança de cada lado da cabeça, o que a fazia parecer excessivamente infantil, apesar dos olhos inteligentes e desafiadores, Diego, um poeta de 13 anos que ainda conservava o jeito de criança, Grace, uma menina com cara de brava e Leia, a mais nova da turma, que carregava o olhar triste e inseguro que reconheci de imediato.

Nessa dinâmica, a primeira meia hora de aula passou sem sobressaltos. Dirigindo-me à lousa, passei a falar sobre a história da narrativa e o esquema com a estrutura do conto. "Todo conto conta duas histórias"; trazendo exemplos de grandes escritores, microcontos, trama e antitrama. Depois de longos 40 minutos, pelo menos dois garotos dormiam sem pudor sobre a carteira e os outros me encaravam catatônicos. Tive a certeza que eu poderia falar qualquer bobagem em qualquer idioma que eles continuariam com a mesma cara. Eu havia me tornado a professora do Charlie Brown.

Parei de falar um pouco e bebi um gole da garrafinha, buscando desesperadamente uma ideia, qualquer uma, que me tirasse daquela situação. Olhando para aquelas 10 caras que variavam entre tédio e deboche, tomei a única atitude que estava ao meu alcance e não envolvia sair pela janela para nunca mais voltar. Pedi que escrevessem.

— Pessoal, acho que já entenderam um pouco sobre narrativa, então vamos trabalhar um pouco? - a proposta os tirou do torpor e os colegas tentavam disfarçar ao cutucar os dorminhocos. - Quero que me contem a história de vocês com a leitura e onde pretendem chegar com a escrita, seus medos, suas inseguranças. Como descobriram os livros, o que esperam fazer, do que gostam mais. Vocês têm meia hora e, dessa vez, não vou impor nem mínimos nem máximo de palavras. - anunciei e observei a movimentação deles abrindo os fichários, com a mesma logo da minha garrafinha e usei o tempo em que eles estiveram ocupados para descansar o braço e pensar no que fazer.

Quando me entregaram os trabalhos, eu continuava sem ideia nenhuma e liberei a turma. Fui para casa com a pasta cheia de trabalhos. Logo que entrei no carro, recebi a ligação confirmando o horário na terapia que Josué impôs para não revelar meu segredinho. Se quisesse me livrar daquilo, precisava que o projeto desse certo.

Logo que entrei na minha biblioteca/quarto, organizei as redações em ordem alfabética e me pus a lê-las. A de Ana foi a primeira.

Eu nem me lembro quando comecei a ler, acho que foi o meu pai que lia histórias quando era bem pequena, depois, quando nasceu meu irmão Joaquim, lia para ele no berço. Sei o quanto isso foi importante, quando tudo começou a desmoronar em Caracas, dois anos atrás, e o mercadinho do meu pai foi obrigado a fechar. Poder fugir para Nárnia ou viver um amor impossível nas páginas dos livros era uma grande vantagem, quando a barriga doía de fome e ouvia meu irmãozinho chorar queimando de febre. Eu nunca tinha me interessado por qualquer assunto de política, mas entendi bem o que homens maus podem fazer quando poder demais é dado a eles. Quando Joaquim morreu, aos 5 anos, passei dias ouvindo minha mãe com aquele choro rouco no quarto ao lado e lendo as Crônicas de Gelo e Fogo e pude me ver em cada um daqueles personagens, além de entender melhor o que se passava à minha volta. Pretendo ainda conseguir ler livros que me ajudem mais ainda a entender como o mundo funciona, sem ilusões e nem histeria. Ainda tenho medo de mostrar o que escrevo, por isso quero aprender a fazer isso bem, para ajudar quem vai vir depois de mim a entender e não repetir os erros e maldades que vi na minha Venezuela.

Aquele texto sem parágrafos e com um ou outro erro de grafia, fez meu coração parar por um segundo. A crueza daquelas palavras me fez ver algo que não percebia há meses. Nem tudo era a meu respeito. O projeto precisava dar certo, não por mim, muito menos para me livrar da terapia indesejada. Aqueles meninos precisavam de mim, tanto quanto eu precisava deles. 

Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora