Capítulo 37 - E se???

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Nem percebi o caminho de volta para casa. Pensava nas encenações dos garotos com os bonecos transformados em personagens, no quanto a história de cada um ficou impressa naquele trabalho. Alguns me despertaram preocupação, outros me divertiram um bocado. A personagem de Leia talvez exigisse alguma atençao, era algo a considerar. A conversa de Leonardo e Lucas continuava me visitando. Por que Leslie o mandou de volta para a sala sem nem conversar sobre a agressão ao colega? O personagem criado por ele me lembrava alguém e não identificar de quem se tratava me incomodou um bocado. Quando cheguei em casa, ouvi os meninos no video game e subi para ficar um pouco com eles e tira-los do jogo. Terminávamos uma partida de UNO quando Josué se jogou no sofá com um sorriso vacilante. Assim que perdi a partida, mandei os meninos para o banho e fui até ele, deitando a cabeça em seu colo. Ele acariciou meu cabelo.

— Se eles fossem um pouco menores e a sala também, essa cena estaria idêntica aos primeiros dias quando você veio do Brasil.

— Acho que sim. Mas nós mudamos mais que eles. Você tinha o Mark, era um garoto tão mais inseguro e eu estava encantada com a liberdade recém descoberta. Era tão bom poder ficar no seu colo sem o medo de ser criticada por isso; conversar até de madrugada tomando cerveja barata porque o dinheiro não dava para uma que prestasse; correr atrás de emprego, morrendo de medo de não conseguir nada, mas... eu estava tão feliz! Tipo criança com brinquedo novo, descobrindo como a vida funcionava quando era eu quem tomava as decisões, tentando me apoiar em você, que sempre foi tão mais ajuizado que eu. E olha para nós agora: estamos mais velhos, mais ricos, conseguimos coisas que mal tínhamos coragem de sonhar naquela época, mas acho que eu encolhi. Eu era tão mais corajosa naqueles dias! Estava apavorada, mas nem pensava muito, continuava em frente e fazia o que tinha que ser feito.

— Meu amor, você ainda é tão brava quanto aquela mulher que chegou aqui com um gêmeo em cada mão e três malas grandes num carrinho. Você abriu mão da vida de dondoca para morar na periferia em Brasília, depois veio para cá com eles, sendo que só conhecia a mim e à Talita. Tem ideia da coragem que isso exige?

— Não foi bem coragem, foi ele quem pediu a separação. Eu queria há tempos, mas nunca consegui fazer isso.

— Verdade, mas qualquer outra teria se sujeitado a ele para não perder a boa vida, ou se abrigaria na casa dos pais e estaria lá até hoje, estudando para o concurso que sua mãe exigia que você prestasse. Ele só desistiu do casamento porque você sempre resistiu a ele, nunca abriu mão do que acredita, mesmo quando perdeu até a sanidade. Você se mudou de país, cuidou desses meninos, construiu uma carreira invejável, mudou de país de novo, conquistou a Europa e hollywood, voltou para cá, teve a coragem de se apaixonar e construir a família mais confusa e linda da região. Você é a pessoa mais poderosa que eu conheço. Até quando resolveu acabar com a própria vida, você teve que fazer tudo fora do esperado e ainda tentou minimizar os danos. Não são alguns meses de fraqueza que vão mudar isso. Devia se orgulhar de si mesma.

— Vou me lembrar dessa conversa na próxima vez em que me chamar de fresca.

— Tinha que estragar o momento, né Aurélia... E uma coisa não anula a outra, engraçadinha.

— Desculpa. Agora, falando sério, você sabe que eu não teria conseguido nada sem você.

— Teria sim. Você é quem sempre foi e teria encontrado seu caminho, comigo ou sem mim. Logo no começo dessa loucura toda, Jay encheu a cara lá em casa e passou a noite toda me contando que você o transformou de menino em homem, que agora ele tinha tanto a se orgulhar, como nunca esperou. Tive que concordar com ele e completar que não foi só ele quem você transformou num homem de verdade. Você muda o mundo e as pessoas à sua volta e nem percebe isso.

— Assim você vai me fazer chorar.

— Então já chega. Aproveitando que eu sei o quanto você é forte e capaz, quero te avisar que estou voltando para a minha casa.

— Como assim? Quando?

— Agora. Minhas malas estão prontas e você vai me levar lá.

— Tá falando sério? - eu sentia a ponta do nariz se avermelhando.

— Estou. Eu te amo, mas você está bem e eu preciso voltar à minha vida.

— Vou morrer de saudade. - respondi me pendurando no pescoço dele.

— Eu sei, linda. Se eu fosse hétero, Jay nem teria chance. - ele respondeu me fazendo rir.

— Hum, acho que você seria meu marido, e ele, meu amante. Em qualquer realidade, preciso dos dois na minha vida.

— E eu tenho que aguentar sua TPM enquanto ele só desfruta? Não gostei disso, não.

— A gente vai assim que minha mãe chegar para ficar com os meninos.

— Ela ainda não terminou a seleção para a nova governanta?

— Duvido que algum ser humano consiga alcançar os padrões dela. Passamos a metade da vida sem empregada lá em casa, ninguém era boa o suficiente.

Passava das 10 quando estacionei na rua em frente, reclamando pela enésima vez por ele se recusar a comprar um carro.

— Eu que não quero viver esse stress atrás de volante, deixa isso pra quem gosta ou chamo um Uber.

— Nem vou mais discutir, bora levar essas malas pra dentro que eu preciso ir pra casa.

Antes que abrisse o porta malas, olhei de relance para o prédio e uma das janelas me chamou a atenção. Contei os andares mais de uma vez e confirmei que se tratava do apartamento de Jay. Mostrei o que vi a Josué.

— Ele pode ter esquecido, saiu correndo.

— Estranho, ele é todo chato com isso. Você tem chave de lá?

— Você não?

— Podemos não falar disso? Não tenho. Quando descer da sua casa, passo lá e apago. Ele vai ficar fora um tempão.

— É só uma luz.

— Se eu não fizer, vou ficar pensando nisso. Nem precisa ir comigo.

— Quando você ficou controladora assim? Saudade da pessoa com a casa cheia de lego no chão, tomando cerveja no meio da bagunça.

— A pessoa cresceu. Empresta a chave que eu vou lá. - respondi, já impaciente.

— Eu vou com você, fica de boa.

Quando saímos do elevador, além da luz por debaixo da porta, notamos a sombra de alguém se movendo na sala. Josué fez o gesto me pedindo silêncio e apontou o armário do zelador. Engatamos uma discussão muda porque eu queria entrar e ele me arrastou até o cubículo onde se guardavam os materiais de limpeza.

— Eu vou entrar lá.

— Tá doida? Pode ser um bandido, um maníaco, uma fã descontrolada. Vou ligar pra polícia.

— Eu vou entrar lá! 

— E você pensa que é a agente Scully, né?

— Referências dos anos 90 te envelhecem, querido. Não faça isso.

Antes que ele respondesse, o barulho da porta se abrindo nos fez calar. Pelo vão, pude ver quem era o invasor. O que Bela estava fazendo ali?

Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora