- Ajudar em que? - respondi sonolenta e mau humorada. - A única coisa que preciso agora é dormir.
- Daqui a pouco você dorme. - acendeu o abajur e eu vi que devia ser importante. Reuni toda a minha paciência e concentração para olhar o rosto cansado do meu amigo. - Você precisa se recuperar, voltar à vida. Esses dias estava lembrando daquele seu projeto com crianças no Brasil.
- Você diz o Jornada das Letras?
- Sim. Ele mesmo. Você adorava aquilo. Chegava à empresa com um brilho e um sorriso que eu vi pouquíssimas vezes fora daquela época.
- Verdade. Eu adorava aquilo, mas a coisa não durou muito. Os meninos ainda eram pequenos, eu andava ocupada com a empresa e, bem, minha vida não cabia aquilo.
- E o idiota do seu ex-marido não abria mão da sua dedicação exclusiva a ele ou à empresa dele, ou aos filhos dele. Mal tolerava que você escrevesse. Enfim, não quero lembrar daquele traste, mas lembro muito do quanto aquilo te fazia bem.
- Eu sei, querido. É uma boa lembrança, mas não vejo como ela pode me fazer melhorar.
- Conheci uma assistente social em South L.A. e, conversa vai, conversa vem, contei de quando você fazia isso e ela acho que um projeto semelhante poderia ser interessante para alguns garotos que ela atende por lá. - ajeitei os travesseiros para ficar mais sentada.
- Querido, deixa te explicar. Eu não tenho vontade de levantar da cama, não consigo ler e muito menos escrever nada, olhar as pessoas nos olhos, conversar, comer, tomar banho já está levando toda a energia que consigo reunir. Eu estou destruída demais até para chorar. No que eu poderia ajudar? Além do mais, continuo não falando o idioma local.
- É claro que você está péssima. Lembra por que começou a escrever? Segundo conta, era a única maneira de ter algum controle sobre a vida. E é justamente disso que você precisa: tomar as rédeas da sua história e, pra completar, ajudar aqueles garotos a fazerem o mesmo. Ter um motivo forte para sair da cama. Energia a gente tira de onde não tem, como já fez antes. Os livros já salvaram a sua vida em outras oportunidades, pode acontecer de novo agora. E quanto ao idioma, sei que ainda fala as outras línguas, vi falando francês com a Marie e lendo em Espanhol. Ela vai te direcionar para uma turma de hispânicos. De repente é até bom, vai convivendo com gente, saindo de casa e o idioma volta. Mais importante que isso: você volta. O que precisa agora é de um motivo forte que te faça sair da cama. Só lamento não ter percebido o quanto você estava mal semanas atrás. Podia ter começado isso antes de começar a perder órgãos do corpo.
- A única coisa que lamento no momento é ter comprado um Volvo. Devia ter escolhido algo menos seguro.
- Você ainda está machucada, se não, te daria um peteleco por falar isso. Estou falando de voltar à vida, fazer algo importante por alguém.
- Agora você vai dizer que eu devo conhecer gente com problemas maiores que os meus para aprender a valorizar a vida que tenho.
- De jeito nenhum. Isso é uma das coisas mais cruéis a se dizer a alguém doente. Você está lutando como pode e admito que até estou surpreso pelo que está conseguindo. Estou dizendo que precisa de um sentido na vida, uma coisa que te traga de volta, te devolva o senso de importância. Não ousaria pensar em comparar uma dor com outra.
- Acha que vou fazer diferença? Que consigo ignorar esse buraco que só cresce e ensinar alguma coisa a alguém?
- Não vai ser você quem vai fazer diferença. Os espíritos da prosa vão fazer todo o trabalho.
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Leslie era uma moça pequena, com cabelos cacheados cheios de volume que se movimentavam junto com ela. Tinha aquele sorriso fácil e amplo de quem ama a vida como um pacote fechado. O bom e o ruim eram encarados com a mesma atitude. Senti uma certa inveja daquele brilho todo e gostei da moça imediatamente. Foi até a minha casa para conversarmos sobre o projeto que ressuscitei e adaptei para os garotos. Cada palavra que eu dizia, parecia a coisa mais fascinante que ela ouvira na vida. Depois de uma hora de reunião, eu estava exausta e animada. Até meu pai se envolveu, prometendo ensinar técnicas de construção a quem quisesse.
O projeto dela era educar e profissionalizar jovens em situação de risco. Irmãos e filhos de presidiários eram convidados antes que se envolvessem com alguma das muitas gangues da região. Mesmo com a redução drástica da criminalidade nos últimos anos, as regiões mais pobres viviam em risco constante, garotos negros e imigrantes tinham um alvo pintado nas costas e ela lutava para apagar. Ela mostrou fotos das instalações, contou as histórias de famílias que começavam a se reerguer com a ajuda da ONG. Mães que escaparam de relacionamentos abusivos depois de aprenderem uma profissão e serem capazes de sustentar seus filhos. Ela me contou a preocupação com os adolescentes que não tinham acesso a cultura, a falta de esperança num futuro decente, a incapacidade de sonhar e o quanto isso era usado pelos recrutadores das gangues. Era ali que eu entrava. Faria os garotos se encantarem pelos livros, se expressarem pela escrita e resgataria a dignidade e a vontade de crescer. Tremenda ironia. Combinamos de começar assim que removesse o gesso, o que devia acontecer dali a 4 semanas. Até comprei um livrinho de inglês para viagens para aprender do zero a língua que aprendi na infância e agora não voltava de jeito nenhum.
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Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em Xeque
RomanceDepois de descobrirem um amor mais forte que as intrigas de Hollywood e que a implicância de um ex-marido encaminhado dos infernos, Aurélia e Jay estão casados e muito felizes. A família continua cada vez mais forte e eles precisam descobrir juntos...