Capítulo 18 - Brainwriting

112 17 22
                                    


A casa estava quieta quando finalmente cheguei. O trânsito intenso e um acidente feio, fizeram o trajeto demorar bem mais que uma hora. Liguei a TV no lugar da luz e abri uma cerveja de trigo apreciando o leve sabor amargo da bebida gelada. Precisava processar muita coisa. Pluguei o celular ao computador para descarregar as muitas horas de áudio da entrevista. Não sei se poderia chamar  de entrevista. Eu, basicamente, não interrompia enquanto ele emendava uma história na outra. Reconheço que não ria tanto há um bocado de tempo. Dustin sabia ser questionador e divertido mesmo quando contava uma aventura banal envolvendo a filha pequena, uma trilha na mata e um esquilo ladrão de pipoca.  Quando contou da esposa morta, quase me levou às lágrimas, mas conseguiu fazer um comentário ácido no fim e quebrar o clima tenso. Nem todo mundo sabe brincar com as próprias dores e ele era tão bom nisso quanto eu. 

Assim que os dados foram transferidos, peguei o celular, tentando decidir se tentava falar com meu marido mais uma vez, passava da meia-noite em Nova Iorque e eu não sabia se ele estava no hospital com a mãe. Enquanto encarava a tela, lembrei de uma situação, um ano atrás, quando uma fã perguntou se podia pedir à tia dele para tirar a foto dos dois. No caso, a tia era eu. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ele me puxou num beijo que normalmente guardaríamos para o quarto. Quando terminamos, a menina estava vermelha e foi embora sem a foto. Foi a única situação do tipo nos mais de 3 anos em que estávamos juntos. Eu nunca aparentei a idade que tenho e sempre fui confundida com gente muito mais nova que eu. Lembro da professora dos meninos no jardim de infância perguntar se a mãe dos meninos não poderia levá-los no primeiro dia. Ela tinha muita certeza que eu era irmã deles. Fiquei ofendida e reclamei na direção da escola. Hoje eu pagaria por uma confusão assim.

Tomei um susto que quase custou  a cerveja que tomava, quando o telefone tocou assim que o coloquei para carregar. Era ele.

_ Oi, amor. 

_ Hey, baby! O dia foi uma loucura, acabei esquecendo o celular no apartamento da minha mãe e só cheguei aqui agora. Ela teve uns procedimentos complicados, sentiu dor o dia todo.

_ Poxa, que chato! Mas não dava para dar sinal de vida de outro telefone?

_ Amor, até dava. Mas também não quis te atrapalhar. Imaginei que estivesse ocupada e sei que estava certo.

_ Tem razão. - eu estava brava e fazendo um esforço muito menor que o necessário para disfarçar. -  Ela ficou sozinha?

_ Não. Meu pai está lá.

_ Não me diga que ela está usando a doença para manipula-lo a voltar o casamento...

_ Acho que você está sendo cruel. O casamento deles não é da sua conta e nem da minha. Eu sei que a minha mãe é difícil, mas é a minha mãe. Ela podia ter morrido sozinha e isso é trágico para qualquer pessoa. Esperava alguma empatia da sua parte.

_ Difícil é a minha mãe. A sua é uma sociopata. Bem, você tem razão, não devo me meter em assunto de família. Cuide dos seus problemas e, se puder, avise quando estiver apto a voltar para casa.

_ Meu amor, por favor... está duro o suficiente. Não quero ficar mal com você.

_ Não estamos mal, só discordamos nesse assunto. A maioria dos casais discorda em muita coisa. - é claro que eu estava irritada. Era mais que isso e eu não conseguia explicar nem a mim mesma o que era.

_ Queria estar aí com você.

_ Imagino. E quanto às gravações? Já estava tudo atrasado, agora vai piorar.

_ Falta pouco. Todas as cenas em que eu não aparecia já foram trabalhadas, então a produção vai ficar parada até eu voltar. Claro que estão fazendo uma publicidade gigante sobre isso. Espere para ver o quanto eles são bonzinhos, amanhã.

_ Ah, sim. Hollywood está cheia de bons samaritanos. - ele deu uma risadinha pelo nariz, seguida de um bocejo. - Você devia ir para a cama. Sozinho!

_ E com quem eu iria, senhora Hite? Nem cachorro tem aqui para me aquecer.

_ Acho muito bom, mesmo, senhor Hite. Boa noite.

Desliguei depois de garantir que ficaria bem. Olhei para a tela, onde um filme em preto e branco passava sem volume nenhum. Abri mais uma cerveja e dormi no sofá.

*********************************

Acordei com o barulho do liquidificador na cozinha. Os meninos jogavam bola com Thor no quintal e Josué assobiava sobre o barulho infernal do aparelho.

_ O que você está fazendo aqui? E por que está batendo gelo sábado a essa hora?

_ Adivinha! Estou aqui porque a minha sócia não apareceu na editora e o gelo eu decidi usar para te despertar. Ou o colocava para bater, ou jogava dentro da sua calça.

_ Obrigada por optar pela primeira opção. Esqueci que tínhamos marcado e por que ninguém me ligou?

_ Seu celular só dá na caixa. Deve ser porque está descarregado ali no tapete perto das garrafas de cerveja. Aliás, quanto bebeu ontem?

_ Acho que umas quatro. A semana foi difícil. Estava vendo um filme e acabei apagando no sofá. Nada para se preocupar, mamãe.

_ Sem ironia, moça. Vá se compor e eu te espero aqui embaixo para conversarmos melhor.

Obedeci sem discutir mais. Ele estava repetindo o cuidado que vinha tendo desde que me conheceu. Exagerava às vezes, se metia além da conta, mas não abriria mão dele e nem desse cuidado, muitas vezes inconveniente. Desci depois de uma ducha rápida e de parecer apresentável o suficiente para falarmos de negócios.

A mesa da cozinha era mais uma vez transformada em escritório para desgosto de dona Fátima, que precisou preparar os sanduíches do almoço no balcão apertado. Gravações, documentos, desenhos e rabiscos se espalhavam numa profusão de ideias que pretendíamos transformar num livro. Não lembro de onde veio a ideia de brincar com elementos fantásticos para narrar os primeiros anos da vida de Dustin, mas no fim da tarde, estávamos satisfeito com a forma tomada pelos primeiros capítulos. Eu prosseguiria com as entrevistas na semana seguinte, porque até Josué admitiu que o homem se abriu muito mais comigo que com ele. E alguma convivência ajudaria a traçar e retratar melhor o perfil.

_ Acho que o ritmo está bom. Ninguém aqui é o Senhor King para terminar livro em 2 meses. - ele comentou, fechando o notebook.

_ Eu já escrevi um livro em 2 meses.

_ Precisava estragar a frase de efeito? E foi uma aposta, conheço seu nível de competitividade.

_ Facinho me manipular... é só dizer que eu não consigo. E o resultado até vendeu bem.

_ Verdade, mas está longe de ser a sua obra prima. Temos até julho para terminar a primeira versão e é o tempo que vamos usar. 

_ Sim, senhor. Vamos jantar no Cheesecake Factory? Tô morrendo de fome e nem fiquei com as crianças hoje. 

_ Boa. Tem notícias da sua sogra?

_ Deve estar viva, se não, já teriam me avisado.

_ Você me assusta às vezes. E Jay? Como está?

_ Cansado e ocupado. A mamãezinha dele deve estar sugando até o último traço de vida e energia dele.

_ Sim, mas como ele está encarando passar de novo o dia em hospital, quase perder alguém amado depois de tão pouco tempo?

_ Acho que está tranquilo. Ele não reclamou.

_ Você nem perguntou, né? - baixei os olhos em resposta. _ Cara, como o Jay te aguenta? Você é insensível e egoísta. O cara podia ter perdido a mãe logo depois de enterrar a filha e você nem pergunta como ele se sente! Garanto que ele perguntou se você estava bem.

_ Vou perguntar.

_ Agora? Sério, Aurélia, você é uma das melhores pessoas que eu conheço, mas às vezes parece tão indiferente quanto...

_ Quanto quem? Termine a frase. - eu desafiei.

_ Quanto o seu ex marido. Ele fazia isso com você e agora você faz com o Jay. Quero crer que você é melhor que ele e vai se corrigir, mas por favor, acorda.

Eu não tive resposta. Chocada com a minha própria atitude, fui pegar o telefone e tentar consertar o estrago.


Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora