Capítulo 20 - Ponto de vista

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Cheguei à editora ainda abalada depois da conversa. Precisava escrever tudo aquilo imediatamente antes que a emoção toda assentasse. Passadas quase três horas de escrita ininterrupta, virei a cadeira para olhar pela janela. A perspectiva do centro de Los Angeles a partir do 21º andar era algo quase surreal. Carros, pessoas e prédios pareciam fazer parte de uma realidade paralela. Olhando de cima, parecia impossível fazer parte de tudo aquilo que acontecia lá embaixo.

Perdida em devaneios que incluíam enredos para cada um daqueles personagens sem rosto do escritório no prédio em frente, nem escutei Josué chegar. Ele soltou uma porção de pastas na minha mesa, fazendo o vidro  reverberar num som alto.

_ Ai, para que isso? Não podia dizer oi feito uma pessoa normal?

_ Oi.

_ Tudo certo? - respondi ignorando a provocação. - Terminou as entrevistas com os outros membros da banda?

_ Sim e sim. Nas pastas estão fotos de infância, documentos escolares, recortes de jornal. Paula já digitalizou tudo e vou devolver aos donos. Estou ficando realmente empolgado com essa história.

_ Dustin é um cara peculiar. Tivemos sorte em encontrar um personagem como ele, logo na nossa primeira biografia.

_ É, tivemos. 

_ Acredita que esqueci de almoçar? Acho que nós dois devíamos comer um hambúrguer ultra gorduroso com uma caneca gigante de cerveja agora mesmo. - propus

_ Não se pode dizer não a um convite desses. Apesar do pneuzinho indecente que está se formando acima do cós da minha calça.

_ Você continua muito pegável. Vamos! - olhei mais uma vez pela janela antes de me juntar àquela realidade que ainda parecia distante demais.

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Logo depois de almoçar, decidi trabalhar de casa. Havia muito a ser feito e eu não precisava da pressão de terminar rápido para fugir do trânsito. Vesti um pijama confortável e comecei a digitar com Snow ronronando no meu colo. Era tarde da noite quando recebi a ligação do Skype.

_ Hey babe, que cara de cansada é essa?

_ Olha quem fala! Você está um caco. 

_ Devo estar. Preciso de uma refeição decente, uma noite completa de sono e algumas horas de sossego quando estou acordado. Acho que uma maratona de netflix, pipoca e chamego em uma das nossas tardes de preguiça está se tornando um sonho inalcançável.

_ Vamos conseguir. Logo, logo voltamos ao normal.

_ Acha mesmo? Acha que alguma dia nossa vida volta ao normal?

_ Sua mãe vai melhorar algum dia. 

_ Não era disso que eu estava falando. Mas, é melhor deixar para lá.

_ Talvez seja. Tem ideia de quando volta para casa?

_ Espero que no fim da semana. Aí vou trabalhar feito doido para terminar as gravações, começar a ensaiar o próximo e ler uns roteiros que a Michelle recebeu para mim.

_ E quanto à nossa tarde de preguiça?

_ Acho que vai demorar um pouco. Estou com saudade da nossa vida de antes.

_ Evito ficar olhando para trás. Vamos olhar para a frente e ver o que vem lá. É melhor para todo mundo.

_ Se você diz... Babe, eu preciso de um banho e uma cama quentinha. Foi muito bom falar com você.

_ Entendo. Seu pai ficou lá com ela?

_ Sim. E a nova namorada dele esteve lá mais cedo. Eu não ficava tão tenso desde o dia em que conheci a sua mãe. Mas, todos se comportaram muito bem. Até Jonathan resolveu dar o ar da graça. Ele fica com ela amanhã de manhã e espero que se mantenha assim até a alta.

_ E depois? Como vai ser quando ela sair do hospital?

_ Então... precisamos conversar a respeito. Já contratamos uma enfermeira, mas não acho que  seja uma boa ideia ela ficar sozinha no fim da recuperação. Pensei que ela poderia ficar com a gente até estar realmente bem.

_ Primeiro, eu duvido que ela seja liberada para uma viagem longa de avião tão cedo. Segundo, por favor, me diz que você não falou com ela sobre isso antes de conversarmos a respeito.

_ Não exatamente. Mas, tem razão. Foi uma péssima ideia. Agora eu realmente preciso dormir. Amo você.

_ Também te amo. - respondi quando ele já encerrava a transmissão, sem a certeza de ter sido ouvida.

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Logo depois dos meninos saírem para a escola,  a campainha tocou insistentemente. Tropecei em Snow antes de atender e tomar um susto.

_ DD? Algum problema? Está perdido? Quer entrar? - eu precisava desesperadamente melhorar a reação ao ser surpreendida.

_ Quero falar com você e trouxe o seu predileto. O maior copo de espresso que tinham na cafeteria. Podemos dar uma volta?

O parque Van Nuys poderia estar vazio, não fossem as babás assistindo a pequenos milionários brincarem e aposentados caminhando ao vento daquela manhã fria para os meus padrões.

_ Você me perguntou se sinto culpa pela morte da minha mulher.

_ Não foi exatamente isso. Pensei que pudesse se sentir culpado pelo próprio comportamento antes. Por estar como estava ao receber a notícia. E porque culpa é um sentimento que não necessariamente faz sentido.

_ O que eu senti não vai sair dessa conversa. Neste momento estou falando com a mulher que me faz sentir confortável o suficiente, não com a minha biógrafa.

_ Claro - respondi relutante. 

_ No momento da notícia, senti o desespero que qualquer homem sentiria ao perder a companheira da vida toda. Estávamos juntos há mais de 20 anos, mas a conhecia desde sempre. Ela foi minha vizinha, minha melhor amiga e minha maior cúmplice desde que tínhamos 10 anos de idade. Ela era a menina esperta que se enfiava comigo no mato, confirmava mentiras para a minha mãe e me ajudava a conseguir garotas. Era linda como um anjo e só a notei como mulher quando minha carreira já tinha estourado e eu tinha transado com tantas groupies que começava a enjoar daquilo. Ela me trouxe estabilidade num momento em que eu nem lembrava mais o que era isso.Era a garota perfeita, inteligente e doce, apaixonada por mim. Fui egoísta demais para perceber que eu não seria capaz de fazer bem nenhum a ela, que o melhor a fazer era deixá-la ir, mesmo que isso a magoasse. Escolhi manter o casamento sabendo o quão mal a relação comigo fazia a ela. Fui um filho da puta egocentrista mais uma vez. Depois que o choque inicial passou, precisei analisar tudo o que aconteceu naquela noite. Ela nunca teve medo de dirigir à noite, mas sempre foi prudente. O trecho onde ela estava no momento do acidente era perigoso e ela estava a uma velocidade muito acima do permitido. Nossa filha caçula havia acabado de entrar para a faculdade e isso me alertou para uma possibilidade que sempre me preocupou.

_ Acha que ela pode ter provocado o próprio acidente?

_ Nada ficou comprovado, mas essa possibilidade me assombra todos os dias. Eu não sei o que pensar e sei que se ela realmente fez isso, a culpa é absoluta e completamente minha. O que sinto não é culpa, mas um remorso gigantesco por ter a certeza que eu a machuquei o suficiente para esta ser uma possibilidade real. Jurei nunca mais machucar alguém assim e é por isso que desde a perda dela, nunca mais me aproximei de verdade de ninguém. Digo, não mais do que me aproximava enquanto ela ainda estava aqui. Amar um cara como eu não pode fazer bem a ninguém.

Ele tinha os ombros tensos e acompanhava uma formiga no gramado. Eu não falava nada. O que diria? "Fica tranquilo que ela provavelmente se matou por razões que fogem do seu controle"? Antes que nos levantássemos, uma senhora se aproximou, pediu uma selfie e um autógrafo, saindo em seguida.

_ A parte boa de estar na estrada há tanto tempo, é que agora as fãs são bem mais tranquilas. A maioria tem idade para ser sua mãe.

_ Pra falar a verdade, minha mãe é muito sua fã.


Mais que perfeito vol.2 - Perfeição Em XequeOnde histórias criam vida. Descubra agora