"Meu amado Ethan,
Sinto sua falta. Queria possuir a coragem necessária para pedir que venha ao meu encontro. Mas sei que não posso coordenar seus passos. A sua mente sempre foi a sua bússola, enquanto eu me permito me guiar pelo meu coração. Faz anos que você, Ethan Denbrook, é meu norte e sul. Leste e oeste. E eu me sinto sem rumo. Oh, quantas tolices..."
(Somerset, 12 de janeiro de 1867. Carta escrita por Agatha Crane, e amassada logo em seguida. Correspondência nunca enviada.)
"Meu caro amigo Ethan,
Alegro-me ao ler suas aventuras em seu Grand tour. Quando chegar a Itália não se esqueça de visitar aquele vilarejo que eu lhe disse. É um lugar esplêndido..."
(Somerset, 12 de janeiro de 1867. Carta escrita por Agatha Crane. Correspondência entregue ao destinatário.)
No dia seguinte... Ou será que ainda era o dia anterior? Ethan não soube definir. Nunca acordara tão cedo em toda a sua vida, mal podia-se ver os raios do sol penetrando as frestas da elegante cortina que cobria a janela. Contrariado, ele removeu o travesseiro debaixo de sua cabeça, colocando-o sobre o rosto, numa tentativa de abafar o som deplorável que castigava seus ouvidos.
Não solucionou seu problema.
Ao que tudo indicava, uma pessoa surda estava tendo aulas de violoncelo e esquecera de afinar o instrumento. Aquilo era ultrajante. Principalmente, porque haviam visitas na casa. Um conde, pelo amor de Deus! Eles estavam recebendo um conde!
Como dormir não era uma opção, ele chutou com brusquidão as cobertas, destampando seu corpo, e arrastou suas pernas para fora da cama. Sonolento, ele caminhou pelo quarto, sem nenhuma razão aparente, não tinha para onde ir. Quinze minutos depois, alguém estava assassinando fá menor enquanto ele procurava seu relógio na gaveta da escrivaninha. Inferno! Ainda não passava das seis da manhã.Ele sofreu calado durante o concerto dos infernos. Não cabia a ele tomar uma atitude sobre os modos rudes da família Crane. Mas, em uma próxima oportunidade, ele se lembraria de nunca agir impulsivamente, aceitando outro convite daquela natureza. Sobriedade regia a vida de Ethan Denbrook desde... Bem, desde sempre. Suas ações eram moldadas pela ponderação e sensatez, e toda as raras vezes que ele desviava-se de sua natureza prudente, se arrependia.
Ele estava certo que se arrependeria, não demoraria muito, do que faria a seguir. Em dúvida, ele parou, a mão posicionada sobre a fechadura da porta. Um breve momento de ponderação fez que pequenas linhas de expressão se formassem em sua testa. Deveria voltar para cama e tentar dormir, era o pensamento mais coerente. Mas então ele ouviu o clique da porta se abrindo e já era tarde demais para mudar de ideia. Em um incomum ato de impulso, ele deixou o quarto, seguindo o rastro do som.
Se as cordas daquele violoncelo arrebentassem, Agatha Crane seria uma mulher morta. No sentido literal da expressão. Pelo menos, foi o que prometera Holly, sua melhor amiga, que havia lhe emprestado seu instrumento. Ela bocejava continuamente enquanto continuava a tocar. Em dias normais, ela só levantava-se depois das nove, quando o sol invadia seu quarto. Um sentimento de culpa a espetou, próximo do coração, quando viu que acordara seus pais, e provavelmente a casa inteira, mas ela fez o possível para se livrar daquela emoção. Quando sua mãe apareceu na porta da sala de música, que Agatha deixara estrategicamente aberta, para que o som se alastrasse pelos outros cômodos, e lhe dera um olhar enviezado de repreensão, e até mesmo um pouco decepcionada, ela quase desistiu. Sentia-se ridícula. Todavia, se ela não infernizasse a vida de Ethan, só restaria uma alternativa. Tratá-lo com cordialidade. E isso ela não poderia fazer.
Uma sombra projetada no piso do salão atraiu a atenção de Agatha. Ela ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Ethan Denbrook concentrado em seu rosto. Ele não estava vestido. Não de forma apropriada, ao menos. Um roupão azul cobria quase que totalmente seu corpo. Mas ele não usava gravata, o que deixou parte do seu peito a mostra. Mesmo a uma distância considerável, ela pôde enxergar alguns pelos naquela região desnuda.
Ele pigarreou, e ela parou de tocar.
- Peço que me perdoe, Agatha. Eu não pude imaginar que era você o musicista misterioso.
Ele usara seu nome de batismo.
Ethan viu a jovem engolir em seco, nervosa.
- Oh, eu o acordei? - disse ela espantada, mordendo os lábios. - Pobrezinho...
Aquilo era piedade no tom de voz dela? O corpo dele inteiro se enrijeceu. Já havia ouvido falar daquele sentimento. Mas nunca o testemunhara antes. Não precisava que as pessoas sentissem pela dele.
- Não se preocupe comigo. - ele respondeu, um tom grave e contido.
Ela assentiu.
- Peço que me perdoe, Ethan. Oh, estou tão envergonhada. Eu deveria ter previsto que minha obstinação em aprender a tocar poderia incomodá-los.
Agatha deixou o instrumento de lado e cobriu o rosto com as mãos.
- Não vou perturbá-lo com frequência. - ela garantiu, sem olhar para ele. - Eu só pratico às segundas, terças e sextas.
Ela ouviu um longo suspiro e soube que o seu convidado estava ficando farto dela.
Excelente.
Ethan estava prestes a despedir-se e se afastar. Eles estavam desacompanhados. Além disso, ele não estava vestido com decoro, o que só piorava sua situação. No entanto, antes que ele pudesse agir, ela sorriu inocentemente em sua direção, seus olhos novamente se encontrando.
- Encare isso pelo lado bom. - a jovem sugeriu. - Agora que está acordado você pode aproveitar o belo dia que acaba de nascer. Talvez uma caminhada lhe resulte agradável.
Ele olhou para o roupão que vestia, e depois voltou a encará-la.
- Meu valete ainda está dormindo.
Agatha deixou escapar um risinho.
- Duvido muito. - gracejou, ciente que o som do violoncelo devia ter acordado até os cavalos no estábulo.
- Bem, de qualquer forma, ele só começa a trabalhar às oito. - ele esclareceu laconicamente.
Ela ficou um minuto em silêncio, pensativa.
- Use suas próprias mãos para vestir-se então.
Os lábios de Ethan se abriram, para contradizê-la, mas então ele ouviu seu próprio pensamento, e viu que externá-lo lhe causaria vergonha. Não podia dizer àquela impertinente que nunca havia se vestido sem ajuda. Faria com que ele parecesse um tanto inútil. Ele exalou profundamente. Aquela mulher não era o que ele imaginara.
- Obrigada pela sugestão. - disse com voz neutra. - Está mesmo um belo dia lá fora.
Ela sorriu abertamente.
Sem saber por que, ele detestou aquele sorriso. Aqueles dentes pareciam zombar dele.
Com um movimento veloz e silencioso, ele virou para se retirar dali. Enquanto passava pela porta ouviu a voz melosa de Agatha o alcançar.
- Lembre-se, Ethan, a camisa se coloca pela cabeça. E a calça pelos pés. É bem simples, você verá.
Ele continuou andando. Afastou-se dela imediatamente. Ela estava zombando dele, não precisava ser muito inteligente para perceber isso.
Agora, o que realmente o intrigava era o motivo.
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Como enlouquecer um conde
Hayran KurguAgatha Crane vive uma pacata e feliz vida no campo, até que um dia uma visita inesperada e inoportuna ameaça pôr fim à sua tranquilidade. Desesperada, a jovem impetuosa fará o que estiver ao seu alcance para afastar um certo hóspede indesejado, mete...