Sede de sangue

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A noite fria me despertou.

A cabana silenciosa permanecia do mesmo jeito como quando eu fechei os meus olhos horas antes. Minhas roupas não estavam mais encharcadas por suor, no entanto eu tremia de frio.

A vela que eu havia ascendido, que antes passava de seus quinze centímetros, agora estava quase se acabando a pouco menos de dois centímetros do chão, ao lado da cama. Alcancei a outra deixada ali próximo e usei o fogo da primeira para ascendê-la.

Levantei sentindo o corpo menos cansado, mas ainda um pouco dolorido.

Fui até a porta, arranquei e arrastei a cômoda, que usei como barricada. Depois de analisar a escuridão lá fora fechei novamente convencido de que ainda tudo estava bem. Com a cômoda novamente em seu devido lugar estratégico, sentei-me na cama e me cobri com o lençol empoeirado e fedido.

Minha mente vagava longe novamente, em um tempo onde eu não era um “cara bom de briga.” A saudade da minha casa, da minha cama, da minha caneca enfeitada com desenhos de grãos de café, mas que nunca foi usada para tomar café. Meu mundo virou de ponta cabeça e agora lá estava eu escondido dentro de uma cabana fria e escura no meio de uma floresta que ficava em lugar nenhum.

Sozinho.

Talvez eu não devesse ter fugido dos rapazes, talvez nós teríamos conseguido chegar a um conjurador, talvez tudo ficaria bem com eles. Como estavam agora? Onde estavam?

Para aumentar ainda mais a fragilidade das minhas emoções, as imagens de Ed e meu pai insistiam em passar diante dos meus olhos fechados, cada sorriso, de cada um deles, cada vez que ficaram bravos, todos os nossos jantares, as vezes que nadávamos no lago. Cada imagem vasculhando as embraças de forma mais profunda, desenterrando alegria e dor, revolta e culpa, medo e solidão.

Meu pai sempre sorridente com sua forma seria de ser. As vezes enfiados nos projetos, as vezes lendo um livro qualquer, as vezes apenas dormindo quando dizia que ia assistir televisão. Nós nunca conseguíamos assistir um filme juntos, porque ele sempre, sempre dormia.

Lembro das vezes que ele se sentava sobre o sofá e eu sobre o carpete e assim ficávamos até os créditos do filme indicarem o final. Eu falava, falava muito. Comentava cada cena explosiva, cada frase sem nexo e dizia o quão bonita foi a cena, depois eu ouvia o seu ronco tímido e sorria ao vê-lo dormindo de qualquer jeito enquanto eu tagarelava sobre tudo.

Depois Diógenes aparecia de repente da cozinha, ou do seu quarto, ou sabe-se lá de onde e se sentava no outro sofá, sempre soltando uma risadinha e uma piadinha sobre a atenção ausente no meu pai. Eu ria baixinho com ele e depois, quando o filme acabava eu soltava um grito fazendo o meu pai pular e saia correndo a gargalhadas. Ele fingia ficar bravo, sempre repetindo a mesma frase, “Se eu pegar você, menino, você vai me pagar.” Diógenes ria com tudo aquilo e depois ficavam os dois lá conversando sobre qualquer coisa.

O telefone tocava em algum momento do dia, meu pai atendia, pois sua mesa de projeto era bem próxima ao telefone e como eu sempre estava longe... Eu sempre prestava muita atenção nas conversas, no intuito de saber se Ed nos faria uma visita, pois ele era a única coisa que me tirava da minha rotina.

Meu pai sempre atendia com um “oi!”, quando se tratava de algo serio ele franzia a testa e ficava calado por alguns segundos até voltar a falar com voz calma. As vezes ele parecia mais alegre do que o normal em suas ligações e sua voz também ficava um pouco alterada, meu sinal vermelho da curiosidade soava alto, pois todas as vezes ele subia escada acima com um largo sorriso estampado no rosto. Eu e Diógenes comentávamos sobre um possível romance, que nunca nos foi revelado. Quando era ele sempre sorria e dizia “Edmundo meu amigo, como vai?” e sem querer eu abria um largo sorriso, sabendo que quando eles terminassem a conversa meu pai diria: -- Passarinho venha dar um oi para o Edmundo.

Eu nunca tinha nenhuma novidade, mas Ed sempre me contava algo novo sobre o trabalho, o seu noivado, a ida a balada com os amigos, e muitas outras coisas. Estávamos programando um final de semana para eu ir com ele para a cidade, eu nunca ia à cidade sem meu pai e por causa disso eu insisti muito para que ele permitisse que eu fosse.

Ed sempre dizia que meu pai me amava e por ter perdido minha mãe no parto acabava exagerando ao tentar me manter seguro. Eu sabia que ele queria me proteger, mas ele nunca me falou do que ou de quem, agora eu sabia.

Eu não me sentia incomodado por isso, afinal meus fantasmas sempre foram minhas companhias, mesmo com sua distancia.

Steve.

O fantasma da camisa vermelha.
O que naquele lago segurava a lembrança dele lá? Foi ali que ele morreu? Como ele morreu?

Depois de um tempo eu me acostumei tanto com a presença deles, que saber como tudo aquilo funcionava já não era assim tão importante. Eu não me perguntava o porquê das coisas, elas só aconteciam e isso era normal. Bem... Era normal para mim.

Eu sentia falta deles e queria achar os objetos que guardavam as lembranças do meu pai, do Ed e do Diógenes. Eu queria poder vê-los, eles não precisavam falar, sorrir, andar, não precisavam nem mesmo olhar para mim, mas eu precisava tanto deles. Eu queria tanto estar com eles. Eles eram o meu porto seguro.

Porto seguro.
Porto seguro.

Uma lagrima escorria pelo meu rosto naquele momento e eu a ignorava ainda vislumbrando todas aquelas recordações, que nunca passariam disso.

Quem iria me ver quando eu morresse?

Alguma energia estranha crescia em minhas veias enquanto minha mente vagava pelo tempo a procura de paz e segurança, coisas que eu definitivamente não encontraria na vida real. As emoções despertam os dons adormecidos e aquilo acontecia naquele exato momento de forma involuntária, poderia ser o dom de acessar as lembranças dos mortos novamente, ou o dom da influencia, apesar de eu estar sentindo algo diferente. Sim, era diferente.

Era algo novo.

O lençol velho de repente ficou quente demais, meu corpo formigava com aquele calor. Era um dom novo. Um dom forte e apesar de eu não fazer a mínima ideia do que era, eu sabia que aquele era um momento oportuno para isso.

Esses dons sempre apareciam em momentos de necessidade, talvez fosse um instinto de sobrevivência, talvez coincidência ou qualquer outra coisa, mas eles sempre apareciam quando eu precisava deles. Eu era uma arma e agora eu tinha certeza disso.

Eu era a minha salvação.

Eu era tudo o que eu precisava.
Eu era a arma mais poderosa que eu tinha.

Deixei o tecido fino do cobertor escorregar até o chão, eu já não precisava mais de nada para me aquecer.

A energia estranha viajando pelas minhas veias e células e tecidos, me tirando dos meus pensamentos, fazendo-me voltar para a minha realidade, trazendo-me de volta para o presente, me preparando para o que estava vindo, me preparando para Odete.

Eu estava pronto, e aquele calor que eu sentia, a energia que me envolvia, era o suficiente para me fazer acreditar nisso.

Abri os meus solhos e levantei daquela cama. Como sempre algo estava diferente em minha forma de me locomover e ver as coisa, passos confiantes e postura ameaçadora dominaram o meu corpo magro. Eu via tudo ao meu redor de forma diferente, de uma forma que eu não posso explicar. Eu sabia como usar cada coisa daquela cabana como arma, sabia como usa-las para machucar alguém. As ideias não paravam de vir. Eu me sentia perigoso.

Letal.

Ouvi vozes se aproximar. Meus punhos se fecharam involuntariamente, eu ansiava pela batalha que logo viria.
Quando algum dom surgia, eu sentia como se o corpo não fosse meu e mesmo sendo eu era como se não fosse. Eu me sentia melhor. Eu me sentia mais forte. Eu me sentia preparado.

Um novo dom.
Um confronto.
Sede de sangue.

Eu sabia que eu podia detê-los, não fazia ideia de como eu iria fazer isso e nem se eu conseguiria. Mas eu podia.
Eu não cairia sem lutar.


O Túmulo de Jeremy Rily (Livro 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora