Seus olhos ficaram, repentinamente, muito vagos. Como se fossem apenas um simples vão dentro de um cômodo que antes, fora amado. Sem o usual brilho ou expressividade que a loira mais nova tanto amava.
Em seguida, ela respirou fundo, lentamente
Era visível a luta interna que estava travando consigo mesma nesse momento. Parecia se punir internamente um milhão de vezes
Comprimiu os lábios e então, soltou o ar pela boca. Para finalmente, olhar diretamente nos olhos de sua esposa
- Você sabe tudo sobre a minha infância - disse com calma - Foi aquilo que eu te disse, você viu nas fotos e ouviu de todos. Eu fui a menina perfeita, aquela que tocava piano, falava francês e dançava balé. Tudo como Clara sempre sonhou - o desprezo em sua voz ao mencionar o nome de sua mãe, foi quase palpável, e Dinah não entendeu - Foi uma infância maravilhosa, e não houve espaço para dúvidas, afinal, quem duvidaria que eu não era uma menina? - suspirou e voltou a fitar o nada - Quando Chris nasceu, eu tinha seis anos e eu fiquei encantada por ele, principalmente, porque ele tinha um membro igual ao meu e como você deve saber, aos seis anos, os gêneros sexuais nem sequer existem em nossas cabeças. O ponto é, que achei que ele era igual a mim, porque que eramos fisicamente parecidos.
[...] Só que quanto mais Chris crescia, mais eu notava coisas divergentes entre eu e ele, tudo para meu irmão era azul, enquanto pra mim, rosa. Ele tinha vários carrinhos, eu, inúmeras bonecas. Comecei então a notar a diferença na fala de todos, coisa que eu jamais havia percebido, Chris era "ele" eu, era "ela". E só então, entendi que éramos diferentes e eu queria saber o porquê, já que ele tinha o mesmo que eu. Nossas babás não tinham autorização para falar disso comigo, Papa nunca estava em casa e Mama me dava respostas vagas sempre afirmando que eu a menininha perfeita dela. Até me explicarem na escola a diferença morfológica entre feminino e masculino. Então me perguntei o que eu era, já que eu parecia ser os dois, fui direto a minha mãe, e aos oito anos de idade, ela me disse que eu era uma menina e que tinha um beneficio que as demais não tinham e que isso, iria me livrar muita coisa, uma delas, era estragar minha vida com uma gravidez...
Lauren riu triste, olhando finalmente para Dinah, que lhe escutava com completa atenção, vidrada em si
- Eu sempre quis ser mãe - deu de ombros envergonhada - Sempre quis minha própria família - explicou novamente, abrindo um sorriso triste - Mas eu acreditei na minha mãe, afinal, ela era minha mãe e aos oito anos, quando sua mãe diz alguma coisa, não há muito espaço para duvidar não é? Pois bem, o tempo passou e eu estava feliz com minha condição e meu "benefício". Até a puberdade chegar e meu corpo começar a mudar significativamente aos treze anos, eu tinha tudo que uma menina tem, pelos pubianos, seios, TPM mesmo sem menstruar e meu pênis começou a crescer significativamente - corou de forma adorável o que fez Dinah sorrir nasalmente, ela sabia o quão grande sua esposa era pois era justamente a loira quem a tinha dentro de si - No Eton, pelas saias do fardamento, ninguém notava mas... No balé, as coisas começaram a mudar... - sua voz se perdeu gradativamente
Dinah já começava a ligar os pontos e recorda-se daquele dia na escola de balé de Camila, agora algumas coisas faziam todo sentido e a loira sentia o estômago revirar-se mesmo sem saber o que Lauren diria a seguir
- Elas descobriram? - perguntou com medo da resposta
Os olhos verdes voltaram para si. Atormentados e vagos, um reflexo do interior daquela mulher que a amava com todo o seu forte ser
- Completei quatorze e fui adiantada, Madame Edmond me colocou numa turma mais avançada com meninas de 16 e 17 anos, lá, as meninas já sabiam o que era um pênis por... Terem maior contato com meninos, então, como você pode imaginar, Rebyka Evans, a chamavam de Becky, descobriu meu "beneficio" - ironizou séria - E logo todo o Royal Ballet sabia - e então fez um longa pausa, respirando o fundo e deixando os olhos verdes vagarem por todo o coreto até ter forças para iniciar a abertura daquela porta negra que jazia há tanto em seu peito - Primeiro vinheram só as rissadagens, depois as piadinhas, as agressões verbais e finalmente, os tapas, beliscões e arranhões que evoluíram rapidamente para socos, a principio tentei revidar, mas elas eram muitas e as coisas ficam pior sempre que eu tentava ao menos pedir ajuda.
[...] Esme Gibbson era de uma turma a frente da minha, no Eton, ela entrou em meados dos anos noventa no balé, descobriu tudo sobre mim e na manhã seguinte, todo o Eton sabia. Lá, as coisas eram mais civilizadas, ninguém podia agredir ninguém ou seria expulso, mas isso não me poupava das agressões verbais ou das risadinhas insuportáveis... Eu estava perdida, não sabia nem o que eu era e nem porque, justo eu que sempre fui adorada toda a minha vida, estava passando por isso. Mama nem sequer se ligava pra isso, quando minhas babás a contavam ela dizia que era coisa da infância... Papa nunca estava em casa mesmo, não tinha como ele saber. Sob os protestos da minha mãe, aos dezesseis deixei o balé para sempre depois de minha apresentação como Odette em O Lago dos Cisnes, e um dia, vi uma reportagem sobre Gordonstourn, a escola dos príncipes britânicos. Uma escola só de meninos, na Escócia, longe de tudo, onde ninguém sabia quem eu era e eu poderia ser o que eu quisesse. Foi como a luz no fim do túnel, e como saída para o inferno que eu vivia todos os dias, decidi que eu iria... Afinal, as meninas não me aceitavam, eu não via a menor graça nos meninos como elas e eu tinha um pênis, então, eu deveria ser um menino porque era só isso o que restava pra mim...
Dinah engoliu um soluço que ameaçou lhe escapar, as lágrimas desciam por seu rosto sem ao menos ela notar, tamanha a sua concentração. Sue peito doía como se mil facas estivessem sendo enfiadas consecutivamente. As imagens de todo o sofrimento da sua amada mulher quando ainda era apenas uma criança, sendo criadas com eximia rapidez em sua mente. Seu ar era lentamente tomado a cada palavra proferida por Lauren
A britânica se ergueu, tremendo secretamente pela parte que viria a seguida
Ela precisava falar, ou, perderia o amor da sua vida. Talvez, perdesse do mesmo jeito se Dinah chegasse a conclusão de que não dava para conviver com as marcas do passado dela. Há fardos que as vezes, tornam-se pesados demais para serem carregados, até mesmo por aqueles que os possuem.
Enfiou as mãos suadas nos bolsos frontais de sua calça e caminhou sem rumo pelo coreto que outrora, achara encantador, agora, jazia sem cor ou brilho, muito menos beleza.
Concentrou-se lentamente
Precisava fazer
- Mama detestou a ideia - voltou a contar - Papa, mesmo sem entender, notou minha dor, meu tormento mais profundo e então, mesmo sem entender... Me apoiou, me levou ao cabeleiro, deixou que eu cortasse meus longos cabelos em um corte masculino clássico e me comprou roupas de meninos. Quando minha mãe me viu, disse que eu não era mais sua filha... - novamente, sua voz se perdeu no espaço enquanto Dinah fitava somente suas costas fortes. Um longo suspiro - Fui para Escócia como Laurence Jauregui e no primeiro dia naquela nova escola, tudo foi perfeito, eu fui vista e aceita como um menino... Mas o tratamento com os novatos não era lá dos melhores, éramos obrigados pelos veteranos a tomarmos o banho por último, quando a água se tornava ainda mais congelante, dormíamos sem os cobertores pois eles nos tiravam e... Éramos obrigados a assistir O Exorcista todas as noites no quarto de Louis McLean... Mas isso não era uma exclusividade minha, era feito com todos os novatos...
[...] Pelos primeiros meses, as coisas transcorreram muito bem, eu adorava tudo naquele universo masculino... Adorava a força que os meninos tinham e me sentia forte também, a forma como podíamos nos tratar rudemente e estava tudo bem, as brincadeiras pesadas, os esportes e o jeito como falavam de garotas me fez entender que eu gostava de garotas... Mas algumas coisas começaram a mudar, comecei a perceber que eu não era como um todo, igual e eles... Eu ainda queria usar saltos, maquiagens, eu ainda adorava me portar como uma menina e logo, eu desabrochava como mulher, tendo naturalmente, a feminilidade que toda garota tem... Eu não me entendia, vivia atormentada justamente por adorar coisas de ambos universos e tudo só piorou quando eles notaram isso, começou tal como o balé, com coisinhas bobas, até evoluírem para as agressões físicas, só que diferentemente do balé, eu não deixava barato e revidava... Pelo menos aquele bando de imbecis tinham honra e não me cercavam, lutávamos um por vez, quase todas as manhãs enquanto fazíamos a corrida matinal... Eu queria respeito, e mesmo saindo no soco, eu não o tinha, até aparecer aquilo que eu sabia que era a minha grande chance, os jogos anuais das terras altas de Gordonstourn e eu tinha que ganhar
Se virou vagarosamente para a esposa que lhe olhava com lágrimas secas, parecia em choque. Se sentou ao seu lado e tomou a mão pequena contra a sua, a apertando de maneira reconfortante
- Calma... - sussurrou doce, temendo o que a mais nova sentia naquele exato momento afinal, Lauren desconhecia qualquer que fosse a reação a toda aquela história jamais contada
- Con-continue, por favor - Dinah pediu com esforço e em meio a um soluço que se quebrou em seu peito
Lauren respirou fundo mais uma vez e voltou a fitar o nada
- Era uma prova de resistência, tínhamos que passar por pontos estratégicos no meio da mata lateral da mansão e pegar as bandeiras, o time que tivesse mais bandeiras, vencia... Ninguém me quis nos times e aí eu decide ir sozinha... Passei tardes estudando a geografia daquele inferno e no dia da prova, capturei cinco das seis bandeiras e ganhei sozinha o primeiro lugar, me tornando capitã de uma das ordens do colégio... Na hora de me entregarem minha medalha, a Srta. Allardice, nossa única professora mulher, tomou a frente do diretor Hans e me entregou... E então, me disse que só consegui, porque eu tinha a força de um homem... Mas a astúcia de uma mulher - Dinah podia ouvir o orgulho na voz de Lauren - Foi ali, que percebi finalmente, que eu era uma mulher, de corpo e alma, mas com algumas caraterística dos homens... Surpreendentemente, meu pai havia ido me ver receber a medalha, depois de dez meses e somente duas ligações nesse espaço de tempo, é claro que para Clara, eu havia morrido... - deu de ombros e Dinah a viu conter uma lágrima em meio caminho para descer sob sua face
Se era dolorido para Dinah ouvir, imaginasse então para sua mulher, que contava e vivera, todo aquele inferno terrestre
-Papa trouxe Chris e havia trago, a pequena Taylor pra que eu conhecesse... Ela era tão linda - sua voz pareceu sorrir um pouco - Clara havia engravidado em seguida ao meu pedido de sair do Eton... Ela queria outra menininha, já quê não tinha mais a sua... Digamos que Tay não saiu como sua mãe queria, ela não tinha olhos verdes nem cabelos pretos, não era a menina perfeita que Clara queria e como você pode imaginar, a minha Bunny foi rejeitada ainda com horas de vida. Clara nem sequer a amamentou, Papa me disse que ela mal a olhava... E eu... Fiquei maluca por ela assim que coloquei meus olhos naquele bebê lindo... Ela era tão pequenina e fofa com seus quatro messeszinhos - sorriu doce, de olhos banhados pelas lágrimas - Era só o que faltava de pontapé para eu fazer minhas malas, e voltar a ser Lauren de uma vez por todas. No ano seguinte, eu voltei pra Eton e pra ser respeitada, dei uma surra naquela vadia de Esme na frente da escola inteira e a mandei pro hospital, só não fui expulsa porque Papa era um Norfolk, membro de uma das famílias fundadoras e acredito que ele deve ter dado algo ao diretor... Dali em diante, eu fui respeitada por ser temida e isso me deu o incentivo necessário para eu me tornar quem eu queria ser de verdade - concluiu e então se ergueu
Dinah a viu caminhar pelo coreto, de cabeça erguida
Tinha orgulho de sua dor e sua vitória
- Pronto - voltou a falar, seca - Agora você já sabe de tudo, bem vinda ao lado negro da porta - ironizou com amargura
E Dinah lhe olhou em lágrimas e só então, quando fitou aqueles olhos de turmalina que ela tanto amava vendo mais que a dor presente neles, vendo o medo, a insegurança, os anseios, a força e a coragem daquela mulher que derrotara o mundo, completamente só. E ainda pagava um alto preço, por isso. O choro lhe foi forte, os soluços sacudindo seu corpo
Braços ainda mais fortes, lhe puxaram de encontro a um peito cansado, machucado e igualmente forte, onde ela se permitiu chorar, imaginando aquela que fora sua única amada passando por todo aquele inferno, sozinha
E a única imagem que veio consecutivas vezes em sua cabeça, era uma pequena Lauren, apanhando e sendo humilhada por monstros vestidos em tutus e ternos negros.
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Here Comes the Sun
DiversosDinah só queria amor, Camila só queria ser amada e Lauren, não sabia nada sobre isso. "Querida, tem sido um inverno longo, frio e solitário Querida, parece que faz muitos anos desde que ele esteve aqui Lá vem o sol Lá vem o sol E eu digo Que está t...