CAPÍTULO XVI

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O bem vence o mal

O que realmente teria acontecido com Solimar? Onde estaria ela? Para encontrá-
la, necessitamos viajar para outro local próximo a Tebas: Armendale, uma
pequena aldeia de poucos habitantes, em sua maioria lavradores. Em uma rua
estreita e poeirenta, onde habitações se confundiam, estava situado o esconderijo
do lanceiro Solias. Vamos encontrá-lo sentado num rústico banco no centro do
aposento, um pouco nervoso. A um canto, encolhida no chão, estava Solimar.
Olhos fechados, fingia dormir, porém, seu pensamento em prece confiava seu
destino às forças divinas.
Solias pensava... As coisas não haviam ocorrido como planejara. Conforme o
combinado com Otias, levara a serpente para soltá-la no quarto de Nalim em
cuja porta, do lado de fora, Otias colocaria uma rosa vermelha para que ele
pudesse identificá-la.
Com a cumplicidade de sua escrava fiel, Otias daria uma beberagem
narcotizante para adormecer Solimar e facilitar o rapto.
Tudo fora feito rigorosamente, porém, o que Otias não previra era Matur,
passeando com a ama pelo pátio, ensaiando os primeiros passos, sentira sua
atenção voltada para aquela magnífica rosa junto à porta. Estendera os bracinhos
para apanhá-la. A ama, não querendo contrariá-lo, erguera-o do chão, colocando
a flor em suas ávidas mãozinhas.
Contente, Matur levara-a até seu pequeno leito. Quando ele adormeceu, a serva
atirara-a pela porta aberta e esta fora cair a pequena distância. Solias, ao
penetrar no pátio, enganara-se com o sinal. Soltou a serpente no quarto, pela
porta entreaberta, retirando-se apressado.
Depois, cautelosamente penetrou na habitação das escravas. Apanhar Solimar foi
fácil, pois sua cama estava próxima à porta, e ela dormia sob o efeito da
beberagem que lhe haviam dado. Envolveu-a com o manto que trazia,
colocando-a sobre o ombro, e saíra apressado. À porta, recebera da escrava
cúmplice de Otias um pequeno saco de grande peso. Eram as jóias. Quando
galgava a estrada com sua presa, ouvira o grito de terror rasgar o silêncio da
noite. Por uns momentos suas pernas fraquejaram. Um suor viscoso brotara de seu corpo. Realizando supremo esforço, caminhara para frente, suspirando aliviado ao alcançar o local onde escondera os cavalos. Após acomodar Solimar
adormecida, de borco no animal, amarrando-a fortemente, rápido, galopara com
sua presa para a pequena casa que possuía em Armendale, onde chegara ao
amanhecer. Ele estava preocupado. Alguns dos seus amigos da redondeza
haviam-lhe contado o incidente ocorrido com Matur, pois que o haviam sabido
por pessoas recém-chegadas à aldeia, vindas de Tebas.
Como Solias conhecia Pecos e a família, logo lhe foram contar a seu modo a
tragédia. Ele tomou conhecimento do que havia acontecido. Apesar de tudo,
Solias sentia-se horrorizado em pensar que fora o assassino daquela formosa
criança. Ficou descontrolado, apavorado. O grito que ouvira dentro da noite ainda
repercutia em seus ouvidos. Nunca poderia esquecêlo! Fora insensato em
concordar com Otias no atentado contra Nalim. Sua ambição, porém, o perdera.
Solimar também parecia haver-se transformado em uma doente. Dormia ainda.
A beberagem que lhe haviam dado teria sido forte demais? Irritado, lançoulhe
um olhar de esguelha. Ela parecia dormir. Nervoso, ele sentiu que lhe faltava o
ar. Abriu o postigo passando a mão pela testa escaldante. Sentia necessidade de
conversar, desabafar, porém, isto era impossível para ele.
Todo homem que pratica um crime como Solias, carrega dentro de si o peso da
culpa, sem poder dividi-lo. Carregará sozinho seu segredo. Solias já começava a
arcar com as conseqüências de seus atos.
Solimar, entretanto, ignorava o que se passara. Acordara naquela casa estranha.
Vendo-se estendida em uma enxerga, logo reconhecera Solias que, sentado a um
canto, parecia imerso em profundos pensamentos. Um sentimento de terror a
dominou. Percebeu que estava ali... à mercê
daquele homem. Sentia ainda na boca um gosto amargo. Lembrava-se de haver
sentido um sono intenso e que resolvera deitar-se. Compreendeu que Solias era o
responsável.
Sua cabeça atordoada impedia-a de pensar com clareza. Para ganhar tempo,
resolveu continuar fingindo que dormia.
Enquanto o tempo se arrastava lento, Solimar pensava. Refeita já um pouco do
primeiro abalo, recobrara a lucidez, orando ao Pai Celestial com serenidade,
entregando-se confiante aos seus desígnios.
Solias decidiu continuar viagem. Temia que Otias, vendo malogrado seu plano,
revoltada com a morte do filho, o delataria ao marido. Talvez até já
estivessem à sua procura. Preocupado, temeroso frente às conseqüências do seu
gesto covarde, julgou conveniente afastar-se rapidamente daquelas paragens.
Depois de dirigir um olhar preocupado para Solimar e constatar que ela não
havia acordado ainda, saiu em busca de melhores informes sobre o crime e para
ultimar os preparativos para partir. Tinha tempo até a noite para safar-se dali,
levando Solimar. Não a deixaria em hipótese alguma. Muito lhe custara essa
conquista.
Decidido, procurou por um amigo, pequeno lavrador, interessado na compra da
sua casa. Vendeu-a facilmente recebendo em troca dois jumento e diversas
utilidades próprias para viagem. Satisfeito, voltou à casa. Solimar, ao ouvir o
ruído de seus passos, fingiu que ainda dormia. Lançando-lhe um olhar
percrustador, Solias, após desfazer-se das coisas que trouxera, fechando a porta,
aproximou-se da escrava.
Fazia dois dias que haviam partido de Tebas, e ela ainda não se alimentara.
Precisava acordá-la. Assim, certamente não poderia resistir à viagem. Preparou
uma beberagem quente e, resoluto, debruçou-se sobre ela que, sem querer, fez
um pequeno gesto de recuo.
Solias, crendo que por fim ela despertara, obrigou-a a tomar a tisana. Desejoso
de conquistar-lhe a simpatia, sorriu, dizendo:
– Ainda bem que despertas. Estava preocupado contigo. Faz dois dias que
dormes.
Solimar, um tanto reanimada pelo que ingerira, perguntou serena:
– Que aconteceu? Por que estou aqui?
– Bem, a história é longa... eu te contarei tudo. Antes, porém, necessário será
comeres algum alimento. Vou preparar nosso jantar e, enquanto comemos,
conversaremos.
Solias, animado pela calma da moça, esmerou-se no preparo de algumas
iguarias que trouxera. Solimar, querendo levar as coisas diplomaticamente,
obedeceu solícita quando ele a convidou a tomar assento frente à pedra que lhes
serviria de mesa.
Enquanto comiam, ela pediu-lhe que contasse o que acontecera. Solias,
pigarreando, começou:
– Bem... minha pequena. A história que te vou contar é muito dolorosa para ti e deves enfrentar a realidade com coragem. Deves saber que de algum tempo a
esta parte, tenho trabalhado novamente no palácio do nobre Pecos. Há alguns
dias já, caminhava eu pelo jardim quando sem querer chegou-me aos ouvidos o
rumor de uma palestra. Sabes que sempre gostei de ti e ao ouvir teu nome, parei
e pus-me à escuta. Quem falava era a nobre Otias, a um lanceiro meu amigo.
Dizialhe que desejava ver-se livre de ti, porque eras amada pelo sábio Jasar, e
oferecia-lhe vultosas jóias para que ele te matasse. Ele a princípio recusou, mas
depois, tentado pela oferta, decidiu aceitar. Ela combinou tudo para determinado
dia e dizendo que uma escrava fiel de quem era cúmplice se encarregaria de
darte um chá para dormir e de esperá-lo em teu quarto, devendo ele depois atirar
teu corpo ao Nilo. Ao ouvir a conversa, revoltei-me perante o crime que
tramavam contra ti e decidi salvar-te. Na noite do crime, esperei meu amigo e
quando ele passou, abordei-o, pedindo-lhe que poupasse sua vida. Combinamos
então que eu te levaria para bem longe, e que ele diria à nobre senhora que
praticara o crime. Assim, satisfeito por livrar-se de um crime e receber as jóias
valiosas, ele foi ao teu quarto e trouxe-te dormindo nos braços, envolta num
manto, e parti contigo para cá. O resto já sabes.
Solimar ouvira-o quieta. Parecia-lhe que ele menti, principalmente sabendo que
ele fora o fomentador dos ciúmes de Otias, contando-lhe a seu modo, detalhes do
seu passado romance com Jasar, mas sua história possuía um cunho de verdade.
Apesar disso, sentia que não podia confiar nele. Ele não a fixava enquanto falava.
Havia insegurança em sua voz.
Solias continuava maneiroso:
– Sempre te estimei. Revoltou-me tal crime. Não hesitei um só instante.
Abandonei tudo por ti. Bem sei que se me descobrem, matam-me por haver
apropriado de escrava alheia, mas nada disso importa, pois tudo faria para
agradar-te.
Seus olhos ávidos fitavam a moça com audácia. Esta sentia crescer em si justa
repulsa. Mas, ainda branda, respondeu:
– Agradeço-te tudo quanto fizeste por mim, mas exageras tua afeição. Garanto
que ela não é leal e na primeira oportunidade agirás de maneira contrária.
Espicaçado, Solias perguntou:
– Naturalmente pensas experimentar-me?
Sentindo-lhe a vaidade, Solimar respondeu:
– Talvez... mas creio que ainda não estás pronto para tal.

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