CAPÍTULO XV

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Vítima do próprio ódio

Jasar naquela noite estava triste. Sentia o coração oprimido e uma angústia
inexplicável. A conversa com Pecos, na véspera de sua partida, deixara-o
apreensivo.
Com a íntima convivência, aprendera a bem conhecer o caráter vingativo e
orgulhoso da esposa. Dela, jamais poderia esperar um gesto de compreensão.
Sem a presença de Pecos, temia que ela desse vazão ao seu ódio contra Solimar.
Por ser escrava, Otias poderia humilhá-la, persegui-la, fazê-la sofrer. Sabia que a
moça sofreria tudo sem jamais queixar-se, e isto o atormentava. Solimar era
uma criatura espiritualmente superior. Doía-lhe vê-la maltratada por alguém
como sua esposa. Sentia necessidade de tomar algumas providências, mas quais?
Poderia fugir com ela para bem longe, para viverem a vida que haviam
sonhado! Por alguns instantes, seu semblante iluminou-se pensando em tal
possibilidade.
Viver ao lado dela! Seria maravilhoso viajarem juntos sempre buscando novos
conhecimentos dentro da maravilhosa harmonia que reinava entre eles!
Mas... isto era impossível! Ela jamais concordaria. Ele também não se sentiria
em paz fugindo ao compromisso assumido. Além da esposa, existia o filho que
adorava. Matur necessitava de seu apoio, de seu afeto e ele não podia abandoná-
lo.
Não! Ele estava preso moralmente ao compromisso assumido. Havia uma alma
enferma aos seus cuidados, ele precisava ministrar-lhe os medicamentos. Fora
certamente o grande Criados que lhe dera esse encargo. Otias era uma doente!
Ele e Solimar somente poderiam sonhar com a felicidade quando os
compromissos terminassem e eles fossem livres. Ele tinha certeza de que isso
aconteceria um dia, ainda que fosse em outra vida e em outro mundo. Tão
imerso estava em seus pensamentos que não viu quando Nalim, aproximando-se
a sorrir, perguntou amistosa:
– Por que tanta carranca, Jasar?
Surpreso, ele ergueu seu límpido olhar. Via-se que a moça procurava uma forma
de ser gentil. Desde a sua chegada, ela se retraíra em virtude de seus problemas com o marido. Agora que tudo se transformara maravilhosamente, sentira a
necessidade de aproximar-se mais da família dele. Sempre simpatizara com
Jasar, embora o temesse um pouco. Ele parecia tão distante.
– És tu, Nalim – respondeu o moço com cordialidade – estava assim tão terrível?
– Estava assim como que sofrendo muitas dores, teu rosto contraído. Estarás por
acaso doente?
– Não te preocupes. Agradeço-te o interesse. Já que procuraste palestrar comigo
aqui no salão, vens a propósito. Preciso falar-te sobre um assunto muito sério.
Queres dar um passeio comigo pelos jardins? O que devo dizer-te é muito íntimo
e temo ser interrompido por ouvidos indiscretos.
Um tanto intrigada, Nalim aquiesceu, e ambos se encaminharam para os ricos e
suntuosos jardins que guarneciam a casa. Procurando dar um tom
despreocupado à voz, Jasar perguntou:
– Pelo que observei antes da partida de Pecos, tudo está bem agora, não?
– Sim–respondeu Nalim, corando ligeiramente.
– Folgo em saber. Pecos merece ser feliz. É uma esplêndida criatura que irás
aprendendo a amar quando o conheceres melhor. Ele te quer muito e espero que
saibas torná-lo feliz.
– Não sei se estás a par de tudo quanto nos aconteceu, mas agora que vencemos
nosso orgulho e nos entendemos, seremos felizes! Conheço-o bastante para saber
que o amo e que sou imensamente feliz por ser sua esposa.
– Alegra-me tua maneira sincera de falar. Faço votos que sejam muito felizes.
Mas, agora, mudando de assunto, devo falar-te sobre algo que há pouco me
preocupava. Apesar de pouco termos conversado, sinto que poderei contar
contigo. Responde-me francamente: o que pensas sobre Solimar?
Nalim, enrugando o sobrecenho levemente, com certo ar preocupado, respondeu
sem vacilar:
– Que é a melhor criatura que já conheci. Considero-a minha melhor amiga.
– Justamente o que eu pensava! E... se ela corresse um grande risco, que farias?
– Defendê-la-ia com todas as minhas forças.
– Bem, creio que chegou o momento em que ela precisa de ti.

– Mas... explica-te. O que está acontecendo?
– Vejo que nada sabes. Solimar certamente calou todo sofrimento que a tem
atingido. Prefere carregar o fardo sozinha. Só tu nos poderá ajudar. Jasar relatou
a Nalim toda a história do seu romance com Solimar. Usou da máxima a
sinceridade, sem omitir um único detalhe. Nalim admirou-se. A amiga calara seu
grande segredo. Compreendia a superioridade de Solimar sobre Otias e
justificava que esta sentia ciúmes.
Jasar terminou dizendo:
– Como vês, devemos acautelar-nos. Otias é vingativa, pode bem tentar algo
contra Solimar. Contei-te tudo porque assim quando eu me ausentar, zelarás por
ela. Confio em tua amizade e acredito que farás tudo que estiver ao teu alcance.
– Podes contar comigo. Além de confiares em minha estima por Solimar, deves
também confiar em minha antipatia por tua esposa.
– Deves ter piedade dela, Nalim. Quem cultiva tantos pensamentos torturantes
sofre muito! Otias é uma enferma que necessitamos curar. Não devemos nos
prender às suas fraquezas, mas sim buscar nela as boas qualidades, para que
trazendo-as à tona, possamos melhorar-lhe o entendimento.
– Compreendo teu amor por Solimar. Pensas como ela. Conta comigo. Estarei
vigilante. Não permitirei qualquer atitude contra Solimar. Jasar sorriu mais
aliviado. Com a promessa de Nalim, firmou-se um pacto de amizade entre eles,
estreitando os laços de família. Nalim conseguira mais aquela vitória,
Conquistara a simpatia do cunhado, que tanto desejava, para agradar o marido,
mostrando-lhe que o passado fora esquecido e que ela estava tentando adaptar-se
à sua nova vida.
Jasar, por sua vez, sentia-se mais tranqüilo. Eram dois contra um. Certamente
Otias nada poderia fazer. Foi, portanto, quase alegre que ele retornou à casa com
a jovem esposa de seu irmão.
Se os dois tentavam proteger Solimar, outros dois havia que tramavam contra.
Otias, protegida pelas sombras da noite, fora encontrar-se com Solias e
conversava animadamente. O astucioso lanceiro, além da escrava, ainda
desejava algumas jóias e moedas de ouro para participar da empresa. Dizia
servilmente:
– Vós, sabeis, nobre senhora. Se me apanham, atiram-me às feras do grande
sacrifício. Se me derdes o que vos peço, poderei ir para bem longe e nunca mais voltar aqui. Assim, ninguém jamais saberá o que aconteceu.
– Mas é muito. Disseste-me que te contentarias com a escrava!
– Mas vós também não me dissésteis que teria de matar a outra. Otias fez um
gesto de enfado.
– Tu falas com muita crueza. Não gosto de tua expressão. Se não queres a
metade do que pedes, não farei nada mais. Fica tudo desfeito.
– Bem... se me deres as jóias somente, mas aquelas que pedi, farei tudo a
contento e irei embora.
– Certo. Dar-te-ei as jóias, mas espero que sejas rápido no trabalho.
– Tudo sairá conforme o combinado.
Quando se separaram, o plano estava pronto.
Otias, agitada pelo nervosismo, sentiu que a espera seria angustiosa. Por um
momento, aterrorizada com o rumo que havia escolhido, quis retroceder, mas a
idéia da união do marido com a escrava reapareceu em sua mente, e ela
decidiuse a deixar que o plano se cumprisse. Ademais, nada estava fazendo
senão proteger a honra da família. Quanto a Nalim, precisava desaparecer!
Certamente Pecos estaria livre de uma união tão vergonhosa. Tudo quanto
possuíam os dois irmãos passaria assim para suas mãos. Seu filho seria o dono de
tudo! Seria rico e poderoso, invejado por todos!
Otias sorria febrilmente, deslumbrada pela ambição, antegozando o futuro como
dona absoluta daquela casa, exercendo afinal a posição que lhe cabia de direito e
que estava sendo usurpada pela odiosa escrava.
Naquela noite, ao adormecer, foi envolvida em longos pesadelos angustiantes. É
que as energias pesadas com as quais voluntariamente se envolvera, começavam
a fazer seus efeitos.
No dia seguinte, Nalim chamou Solimar e amigavelmente a censurou por não lhe
haver confiado seu segredo. Esta, um tanto surpresa, procurou justificarse,
sorrindo e dizendo:
– Ora, Nalim, sabes muito bem que confio em tua amizade, mas se calei, foi
somente para não te aborrecer com minhas desventuras. Qual o benefício que
poderia tirar em torturar-te com meus problemas insolúveis? Nada há para ser
feito, a não ser a tolerância e a resignação, a fim de que com elas proporcionar a Jasar mais forças para dar cumprimento à sua missão. Se eu esmorecer, ele
também terá possibilidade de fracassar.
– Compreendo teu nobre motivo, ocultando-se teu amor. Apenas é nosso desejo
preservar-te da maldade de Otias.
– Estás enganada se crês que ela poderá atingir-me. Se ela tentar algo contra
mim, estará simplesmente castigando a si própria.
– Como assim? – indagou Nalim surpresa. – Ela poderá causar-te muito mal. É
perversa, vaidosa e, além do mais, ciumenta.
– Que pensas que ela poderá fazer? Maltratar-me, humilhar-me, castigar meu
corpo com pancadas até matá-lo?
– E não é o bastante para temermos?
– Devemos lamentá-la, não temê-la. Quanto mais ela tentar contra mim,
inspirada pelos vícios que seu espírito ainda possui, mais e mais estará sofrendo.
Torturada por seus pensamentos, perderá a paz. Viverá angustiada, acorrentada à
lembrança do mal que houver praticado. Sua vida será assim até que perceba a
inutilidade do mal e decida sair dele. Quanto a mim, por mais que ela atinja meu
corpo, jamais conseguirá atingir a meu espírito. Creia, Nalim, eu a lastimo, não a
temo. – Realmente pensas de maneira diversa dos demais. Não sei como podes
torcer as coisas e mudar-lhes o aspecto de tal maneira que sempre acabo
concordando contigo.
– Não sou eu quem muda os aspectos das coisas. Vejo-as como são. Os homens
criaram as ilusões tentando justificar suas paixões, fugir das conseqüências de
seus atos, com medo da verdade. Porém, um dia descobrirão seus sofrimentos,
quando com boa vontade e compreensão teriam conquistado a felicidade mais
depressa.
– Decididamente tens tuas idéias e não as compreendo bem. Tens pena de Otias
apesar de saber que ela te fará mal; eu, porém, tudo farei para evitar qualquer
gesto dela contra ti. Ainda que teu corpo não seja motivo de preocupações para
ti, eu o considero muito necessário e o defenderei. Solimar abraçou a amiga
efusivamente.
– És muito bondosa, Nalim, mas desejo de ti a promessa de, pelo menos, tentar
uma aproximação com Otias.

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