CAPÍTULO XXIII

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A volta de Solimar

Voltemos, porém, novamente, à casa de Nalim em Tebas, do ponto onde nos
detivemos, exatamente dez anos após o desaparecimento de Pecos. Morria a
tarde, e o sol se despedia vagarosamente transmitindo ao céu maravilhosamente
azul de Tebas, um delicado tom róseo.
Recostada em um coxim, Nalim lembrava o passado. Pensava em Solimar, há
tantos anos desaparecida. Nunca mais tivera notícias dela. Por onde andaria?
Teria morrido?
Como seria feliz se pudesse revê-la! Quanto conforto daria ao seu coração
torturado pela saudade!
Inútil acalentar tal sonho. Tanto ela como Pecos deviam ter morrido. Lembrava-
se da louca esperança que sentira despertar em seu coração aquela tarde no
jardim, ouvindo aquela voz chamando-a.
No dia seguinte, correra com Jasar ao forte, mas disseram-lhe que lá lhe haviam
dado a liberdade, pois se tratava de um pobre camponês detido por engano.
Ela regressara à casa, triste e abatida. Não fora Pecos, mas recordava-se sempre
da emoção que a dominara quando ouvira aquela voz tão semelhante à
dele. Alguns anos passaram, mas ela não conseguia esquecê-la. Estava imersa
em suas reflexões e nem sequer ouviu os passos que se aproximavam.
– Senhora, está aí uma pessoa que deseja ver-vos.
Nalim sobressaltou-se. Receava a insistência de Omar. Ele não esmorecia e,
apesar de tanto tempo decorrido, ainda a perseguia. Valia-se de sua situação de
estrangeira para causar-lhe toda sorte de aborrecimentos.
Desde a morte de Pecos, Nalim não mais freqüentara a corte, mas ainda assim,
ele, abusando de sua posição favorecida, percebendo que ela o odiava, tomado
de rancor, valia-se das mínimas coisas para envolvê-la no desprestígio e na
antipatia de todos.
Ela não se incomodava com isto, mas preocupava-se sinceramente com o futuro
do filho. Pitar, sujeito à chefia militar de Omar, era constantemente espezinhado por ele, pois sua figura lhe recordava o odiado rival. Pitar, por sua vez,
antipatizava com Omar, apesar de ignorar o que acontecera no passado.
Arrancada assim de suas recordações, Nalim, num sobressalto, perguntou:
– Quem me procura?
– Não deu o nome, senhora.
Temerosa, tornou a indagar:
– Acaso algum senhor?
– Não. Trata-se de uma senhora.
Tranqüilizada já, ergueu-se solícita. Com certeza, alguma das que recorriam à
sua caridade.
Ao chegar, porém, à sala onde a aguardava a visitante, seu coração bateu
violentamente e não pôde conter um grito de alegria e surpresa:
– Solimar!
Em rápido instante, as duas estavam abraçadas estreitamente. Tolhida pela
emoção, Nalim não pôde mais calar a mágoa que guardava no coração e
chorou... Solimar, sentindo também que as lágrimas deslizavam-lhe pelas faces,
apertava carinhosamente a amiga nos braços.
Compreendeu que ela sofria. Por acaso, Pecos não teria recuperado a memória?
Não querendo ser indiscreta, deixou que ela se acalmasse e quando serenou a
emoção mais forte, Nalim pôde enfim falar:
– Enfim, te encontro! Vinte anos de separação, na incerteza do teu destino!
Ah! Solimar, como tenho necessitado da tua presença amiga, do conforto de tua
estima, do calor de tua amizade! mas conta-me, que aconteceu contigo?
Após efusivas demonstrações de amizade e de Nalim refazer-se um pouco,
assentaram-se, e Solimar narrou o que lhe acontecera, principalmente a loucura
de Solias, o encontro com o nobre Samir, sua vida, suas atividades. Por sua vez,
inquiriu a amiga sobre tudo quanto se passara após o atentado de que fora vítima.
Nalim, tristemente, contou por sua vez as amarguras que guardava no coração há
tanto tempo, sofrendo as dolorosas recordações do passado. Ao conhecer a extensão da tragédia que acontecera ao homem que amava, que de um só golpe
perdera o filho, a mulher que espiritualmente amava e ainda arcara com a triste
situação de Otias, Solimar sentia que as lágrimas da compaixão e ternura
desciam pelo seu rosto.
Como ele deveria ter sofrido... Alegrou-se com a notícia do filho de Nalim, mas
surpreendeu-se com a narrativa da morte de Pecos.
Quando Nalim terminou sua narrativa, inquiriu firme:
– Acreditas seriamente na morte do nobre Pecos?
– Às vezes, chego a duvidar. Mas por fim sou forçada a acreditar. Se ele não
estivesse morto, certamente viria para casa. Não posso crer que não o fizesse.
– Preciso contar-te o que sei. Pensei que ele estivesse aqui. A calma certeza com
que Solimar falava, surpreendeu Nalim que tomandolhe nervosamente as mãos,
suplicou:
– Porventura sabes alguma coisa? Oh! Dize-me, por favor. Sabes o que foi feito
dele?
– Calma. No momento não sei onde se encontra, mas o que posso garantirte é
que ele, há precisamente uns oito anos, estava vivo. Disseste que faz dez anos que
ele desapareceu.
Nalim, com o coração batendo loucamente, tomada de súbita emoção, abanava
a cabeça esforçando-se para não perder nada do que a amiga dizia. Sofrera por
tanto tempo sua morte, que tinha receio de agarrar-se a uma ilusão. Mas Solimar,
abraçando-a carinhosa, disse:
– Creio, Nalim, que teu marido não morreu como pensas e que ainda poderás
encontrá-lo, Não sei o que lhe aconteceu depois, mas garanto que ele partiu de
nossa casa de regresso ao lar.
Nalim bebia-lhe as palavras, procurando compreender bem o que significavam.
– Mas então como se explica o fato de nunca haver chegado aqui? O que te disse?
Quando, como foi?
– Bem, deixa-me explicar-te. Ele havia estado doente e Samir o havia tratado.
Mas vou contar-te tudo desde o início.
Enquanto Solimar contava, Nalim ouvia bebendo avidamente suas palavras. Ao ter conhecimento do doloroso drama de Pecos, uma enorme angústia
transpareceu em seu olhar e ela gritou surpresa:
– Então... era ele! Com certeza era ele! Oh! por que não corri ao seu encontro,
não permitindo que o levassem?
Enquanto elas, embebidas, trocando confidências, permaneciam esquecidas de
tudo o mais, alguém penetrara na sala e ao ouvir-lhes as vozes, parara surpreso.
O sangue lhe fugira do rosto já naturalmente pálido, o coração latejava
descompassado sem querer acalmar-se: era Jasar!
Vinte anos não haviam conseguido apagar em sua sensibilidade a suavidade
daquela voz.
Era ela!
Parou por algum tempo na soleira procurando controlar as emoções. Ouvindo o
grito angustiado de Nalim, foi ter com elas.
Nalim, ao vê-lo, bradou nervosa:
– Não te disse? Aquele homem era ele! Oh! Meu coração adivinhava. Embora
surpreso com as palavras da cunhada, Jasar fixou o olhar na mulher amada.
Esta, por sua vez, sentindo-se estremecer sob o império de tão grande emoção,
levantou o olhar e seus olhos se encontraram!
Foi o bastante. Compreenderam-se.
Nada havia mudado entre eles. O amor puro que os unia vencera o tempo e a
distância, sobrepondo-se às intempéries da vida. O sentimento que os unia
continuava forte e firme. Triunfara a vida, venceria na morte!
Cedendo a um impulso sincero e irresistível, Jasar abraçou-a com carinho,
dizendo comovido:
– Muitas vezes busquei encontrar-te. Meu sonho hoje se realiza. Ela, vencida por
doce ternura, murmurou:
– Também sou feliz em rever-te. O tempo passou, nós mudamos um pouco,
envelhecemos, porém, a situação ainda é a mesma.
Ele compreendeu. Ela não voltara àqueles anos todos para não prejudicarlhe a ventura doméstica e talvez não pretendesse ficar. Nalim, aflita com seu próprio
drama, os interrompeu, pedindo a Solias que repetisse a Jasar o que lhe contara.
Este, profundamente surpreendido, ao término da narrativa, meditou por alguns
instantes, depois disse:
– Existem muitas coisas inexplicáveis no caso. Eu bem previa que ele não havia
morrido! Pareceu-me deveras estranha a maneira pela qual os acontecimentos
se desenrolaram! Certa vez, tive ocasião de interrogar o espírito do meu
venerando mestre. Sua resposta deixou-me duvidoso acerca do assunto.
– Não me contaste este pormenor – volveu Nalim, surpresa.
– Bem, não estavas a par dessas experiências que venho realizando há
algum tempo. Depois, tudo não passava de hipóteses e eu não possuía nada de
positivo. Teria por acaso o direito de roubar tua paz de espírito? O que teria de
acontecer ninguém poderia impedir. O que se passa neste instante é uma grande
prova da força superior que rege nossos destinos.
– Mas conta-nos tua experiência e tua palestra com o personagem que aludiste.
– Talvez não creias, como eu, que estamos rodeados por espíritos dos mortos e
que agora são invisíveis para nós. Conforme procedemos, atraímos esses
espíritos. Se somos bons, teremos ao nosso lado amigos que nos prestarão socorro
e amparo nas duras lutas deste mundo. Se formos maus, teremos ao nosso lado
seres maus e conseqüentemente sofreremos até aprendermos a ser bons. –
Então, será um castigo do Deus que dizes ser a suprema potência? –
perguntou Nalim.
– Não, Nalim. Colhemos os resultados dos nossos atos. É dessa forma que as leis
do universo nos ensinam a ter responsabilidade. Por exemplo: se eu prejudiquei
uma pessoa, se ela reagir e me odiar, ficaremos unidos dali para frente. Nossas
vidas passarão a girar uma ligada à outra, criando assim um destino inevitável e
desagradável já que ficamos unidos pelo ódio. Se a pessoa me perdoar, se
libertará, mas eu, enquanto mantiver a atitude que gerou o desentendimento, vou
atrair em minha vida pessoas e fatos que me farão sofre tudo que eu houver
infligido a outrem. Só o esquecimento de todo mal e o perdão das ofensas liberta
e evita um mal maior. Por isto que sempre te peço para esqueceres daquele a
quem odeias. Deves perdoar. Embora evites sua proximidade, no íntimo do teu
coração deves perdoar. Fazendo isso serás livre, cortarás o traço que os une, e ele
desaparecerá em tua vida. Jasar sentara-se em um dos coxins, frente às duas mulheres. Falara suave, mas energicamente.
Enquanto Nalim discordava de tudo quanto ouvia sobre as vantagens do perdão,
Solimar olhava para aquele semblante com enlevo. Bebia-lhe os conceitos
elevados, feliz porque suas idéias coincidiam.
Intimamente, pensava comovida:
– “É por isto que eu te amo! Amo tua alma bela e nobre, teus elevados
sentimentos.”
Nalim, porém, não concordava com tais pensamentos. Para ela, o ódio e a
vingança eram necessidades.
– Mas, Jasar, eu se que sempre te serves das ocasiões para me falares neste
assunto. Entretanto, já conheces minha maneira de pensar.Deixemos este ponto
para mais tarde, antes conta-nos o caso que me parece tão interessante. Ele
sorriu com certo ar compreensivo e principiou:
– Está certo. Confiar-te-ei meus segredos. Solimar já os conhecia, mas tu não.
Nalim voltou-se surpresa para a amiga. Era tão interessante a semelhança que
existia entre os dois! Compreendiam-se tanto! Recordou-se que em tempos
passados eles haviam se amado!
Jasar continuava:
– Certo dia, estava preocupado com a morte do meu irmão. Foi justamente
naquela ocasião que, logo após a notícia ser trazida por Omar, eu estivera no
forte oficialmente para saber dos detalhes do caso. Estivera também no palácio
do Faraó a seu chamado para as homenagens de praxe à figura do morto. Apesar
de tudo quanto contaram os homens que haviam estado com ele naquela fatídica
viagem, não me convenceram de sua morte, porque não o viram morto. Apenas
Omar e outro lanceiro afirmaram que os soldados que o capturaram haviam-no
morto sumariamente. Quando de lá saí, estava angustiado, triste e dirigi-me até a
gruta que, de quando em quando, visito e onde vivi algum tempo em companhia
do velho Silas. Lá chegando, extenuado, sentei-me no local costumeiro sobre
uma grande pedra e comecei a meditar. Uma vez sonhara com Silas naquele
mesmo local, e ele me oferecera seu amparo quando eu estivesse em
dificuldades. Outra vez já havia recorrido a ele, quando a tragédia entrou em
minha vida e ele não me faltara. Consolara-me e indicara-me o caminho a
percorrer. Assim, confiante, chamei por Silas, pedindo que as forças do bem e da
natureza criadora o permitissem. Após alguns minutos de súplica sincera, senti-
me atordoado e sonolento. Dormi e acordei sentindo o corpo leve e uma
sensação de alegria. Tudo era nebuloso ao meu redor, mas logo dissiparam-se as
trevas e ele, meu querido amigo, ali estava a meu lado. Sem poder me conter,
falei-lhe suplicante:
– Desculpa-me perturbar teu repouso, mas preciso da tua ajuda!
– Eu sei, meu filho, o que se passa contigo, mas não julgues que nós vivemos
ociosos... Aqui, mais do que no mundo, aprendemos o valor do trabalho. Realizar
o bem, construir utilidades que facilitam a vida, experimentar a própria
capacidade, traz alegria e consciência do próprio poder. Foram os preguiçosos da
Terra que inventaram a lenda de um paraíso ocioso depois da morte, acreditando
que seriam felizes se pudessem viver sem fazer nada. Entretanto, meu filho, a
natureza opera constantemente, renovando-se. E nós somos parte da obra
criadora de Deus Onipotente. Cada ser tem uma função no universo! Estamos
criando, produzindo, renovando, participando do movimento universal. Nós não
estamos em repouso como pensas, nós somos vivos! Somos seres pensantes,
inteligentes. A vida aqui continua. Os problemas, aqui, continuam!
– Realmente assim deve ser, – murmurei deslumbrado com a revelação.
– Quando estamos vivendo na Terra, nos iludimos com as aparências. A Terra
parece-nos ser o centro do universo. Ela não é senão uma pálida sombra dos
mundos espirituais. Os espíritos, ao nascerem no mundo, revelam o que são e
tentam materializar tudo que viram em seu mundo de origem. Os que residiam
em lugares densos e primitivos são partidários da violência, têm gerado grandes
lutas e sofrimentos no mundo. Mas também têm colhido os resultados da sua
semeadura, o que os faz amadurecer. Quando desconhecem as leis sagradas da
reencarnação, a eternidade do espírito, envolvem-se com mais facilidade no
negativismo, criando círculos negativos e viciosos que os mantêm atados à Terra,
sem forças para levantar vôo a planos mais altos. Continuamos, meu filho, aqui
talvez com maior sensibilidade, a sofrer, a amar, a trabalhar e a aprender.
– O que me contas, mestre, abre em meu espírito novas réstias de luz.
– Sinto a tua angústia e desejaria ajudar-te.
– Para isto vim. Dizem que meu irmão morreu, porém eu tenho dúvidas. Os fatos
são obscuros e gostaria de saber a verdade. Só tu podes esclarecer-me.
– Sabes que as leis da vida atuam infalivelmente. Todas as ações que praticamos
são por ela registradas e em tempo oportuno colhemos os resultados. A Terra é
uma escola onde diferentes níveis de pessoas se misturam para trocar
experiências úteis para todos. Sendo múltiplas e particulares as necessidades espirituais de cada um, é justo que para atendê-las, as pessoas tenham de
separar-se durante algum tempo. Terminado um ciclo na aprendizagem, haverá
um período de descanso para o aproveitamento. Nesse tempo, sua vida decorrerá
sem grandes mudanças e ele será relativamente feliz, realizando suas aspirações.
Nosso Deus é bom e justo. Posso vos dizer que um dia estarão reunidos
novamente. O ser é eterno e o amor une as criaturas.
– Queres dizer que ele não morreu? Ainda o veremos nesta vida?
– Não nos é dado antecipar os desígnios de Deus. O que poderia dizer-te, já disse.
Medita sobre o conteúdo das minhas palavras e nelas talvez encontres a resposta
que procuras. Agora, adeus.
– Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Silas desapareceu e logo em
seguida acordei.
– Não compreendi muito bem – murmurou Nalim, pensativa.
– Na ocasião, esta visão aumentou minha desconfiança sobre a morte de Pecos.
Se ele estivesse morto, Silas me teria dito. Nas suas palavras, havia reticências e
agora, a par da verdade, elas se me tornam perfeitamente claras. Que dizes,
Solimar?
– És muito feliz por possuíres tão dileto amigo. Certamente vela por ti,
amparando-te nas horas amargas que tens atravessado. Confio que ainda nesta
vida estaremos todos reunidos. Espero ter a alegria de vos contemplar nesse dia.
– Naturalmente ficarás conosco! – volveu Nalim.
– Apenas por algum tempo. Tenho obrigações a cumprir.
– Falaremos do assunto oportunamente, Solimar, mas fica certa de que não te
deixarei partir. És para mim mais do que amiga, és a irmã. Sinto que preciso de
ti, de tuas palavras serenas e de tua amizade. Queres nos deixar para ficar com
Samir? – Não, Nalim, Samir morreu no ano passado. Outros são os motivos que
me forçarão a deixá-los. Mas espero passar algum tempo convosco. Jasar
acompanhava a palestra com o coração aos saltos, sentia-se feliz com a
esperança de tê-la ao seu lado para sempre. Embora seu amor fosse impossível,
devendo permanecer ignorado, ele poderia usufruir do prazer imenso de sua companhia, de sua palestra inteligente, da suavidade serena e bela do seu rosto delicado.

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