CAPÍTULO XII

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Entre o ódio e o amor

O dia seguinte amanheceu claro e lindo. Como de hábito, a cerimônia do
casamento seria na parte da manhã.
O Imperador, querendo mostrar sua magnanimidade, mandara aos noivos
diversas arcas com presentes e um belo traje de cerimônia para Nalim. Esta,
triste, seguia o curso dos preparativos com indiferença. Encontrava-se só. Seu
pobre pai, assassinado covardemente. Seus antigos amigos e parentes lhe
voltaram as costas, demonstrando claramente quanto valiam seus sentimentos de
amizade.Por último, via-se constrangida a casar-se com um homem a quem
odiava profundamente e por quem certamente era odiada. Uma vez casados,
encontrar-se-ia à sua mercê e ele poderia vingar-se dela quando lhe aprouvesse.
À hora da cerimônia tudo estava preparado. Foi uma noiva pálida que deu
entrada na sala onde ela seria efetuada.
Pecos, garboso no uniforme que Martus lhe emprestara, já a esperava
juntamente com este último.
A sala estava repleta de nobres, e o povo no pátio aguardava o fim da cerimônia.
O dia era belo e festivo.
Um dos sacerdotes, tomando de um longo pergaminho, deu início à leitura do
contrato de casamento.
Pecos recebia a noiva sem direito a nada, pois que toda sua fortuna fora
recolhida aos cofres do palácio, como pagamento aos danos sofridos pelas
traições de Salil.
Em compensação, teria a primazia em seu palácio e mesmo que ele casasse
outras vezes, Nalim seria a mandatária.
Os noivos aparentemente ouviam calados.
Nalim sentia ímpetos de gritar que não desejava casar-se com ele, que ela não
era mulher pobre, que estavam lhe roubando o direito à fortuna sólida de sua
família. A humilhação era muito grande, ela, porém, de cabeça erguida, altiva,
não demonstrava o que lhe ia na alma. Preferia morrer a oferecer o espetáculo
de seu sofrimento aos seus antigos e falsos a amigos ali presentes que se haviam
preparado para assistir-lhe o fracasso.

Pecos pensava. O sangue latejava aceleradamente em suas veias. Desejava
aquela mulher! Amava-a mesmo! Ela agora seria sua esposa. Haveria de
dobrar-lhe o orgulho e fazê-la apaixonar-se por ele!
Muitas mulheres o haviam amado, e ele nunca deixara de realizar uma conquista
quando desejava. Nalim não seria por certo uma exceção. Após a leitura
contratual, ainda havia uma cláusula proibindo Nalim o retorno às terras da
Assíria.
Depois dos noivos firmarem o contrato, os sacerdotes iniciaram os rituais.
Tomando a noiva pela mão, conduziram-na para o pátio externo onde estava
armado o altar dos sacrifícios. Após envolverem a noiva por três vezes com
vaporização de ervas aromáticas que simbolizavam a purificação, obrigaram-na
ao sacrifício de um dos animais por eles considerados malignos, no caso uma
serpente, a fim de obter dos deuses a proteção par a vida familiar. O mesmo
fizeram com o noivo.
Depois, entoando cânticos onde exortavam o casal ao cumprimento de seus
deveres para a conquista da felicidade doméstica, chegou o momento solene da
promessa.
Um dos sacerdotes aproximou-se, perguntando em alta voz se eles queriam
casar-se. Após receber a resposta afirmativa, ele falou sobre a vida em comum
do matrimônio, suas responsabilidades e preocupações, acabando por renovar a
pergunta. Se apesar de tudo desejariam se casar. Nova resposta afirmativa. Ele,
então, tomando a mão direita de ambos, colocou-as sobre uma tábua coberta de
escritos, depois, com um estilete fez uma pequena punção, misturando o sangue
dos dois e com ele fazendo um sinal no contrato de casamento. A cerimônia
estava no fim. O sacerdote apenas exortou Nalim a que fosse uma esposa
honesta e submissa, e Pecos, um esposo benevolente e tolerante. Assim, eles
estavam casados.
Pecos, galante, tomou a mão gélida da esposa e a beijou como era de praxe. Ela
não pôde disfarçar a emoção. Um frêmito percorreu-lhe o corpo e ele viu que
suas narinas arfavam com rapidez.
Fora apenas um instante, mas Pecos o notara e seu coração deixou-se embalar
nas asas do sonho.
Após a saudação ao povo e os brindes de praxe, os noivos preparavam-se para
partir.
Agradecendo a bondade do soberano, Pecos e Martus dele se despediram.

Reuniram-se à expedição e esta se pôs à caminho. Levaram alguns camelos com
provisões e alguns homens da comitiva de Martus. Nalim ocultara seu rico traje
de noiva em uma ampla capa e cavalgava calada. Jamais pensara em retornar
ao Egito. Lembrava-se agora de Solimar! Seu coração alegrava-se em poder
revê-la brevemente. Como ela era boa e compreensiva! Reconhecia-lhe agora
razão quando dizia que seria inútil fugir. É verdade que ela vivera ao lado do pai
aqueles dois anos, mas não seria mais feliz se tivesse permanecido como
escrava?
Ela não fora feliz durante esse tempo. Jamais sua vida voltara a ser como dantes.
Sua casa estava muito mudada sem a presença da mãe. Seu pai tornarase doente
e taciturno. A vingança contra Pecos também não lhe causara a alegria esperada.
E, por fim, a culminância dos últimos acontecimentos que forçavam seu retorno
a Tebas. Não. Ela não fora feliz!
Considerava que antes era escrava somente no serviço doméstico. Agora,
embora voltasse como senhora, continuava escrava, de uma escravidão muito
mais profunda e completa: a de um marido.
Devia-lhe respeito, submissão, amor e somente poderia dar-lhe ódio. Ele haveria
de cansar-se dela muito depressa e talvez lhe devolvesse a liberdade. Pecos,
solícito, lhe perguntava de quando em quando se desejava alguma coisa. Ao
saírem de Nínive e atravessarem o Eufrates, Nalim sentiu-se mais só e
amargurada. A certeza de sua impotência em lutar contra o destino a deixava
abatida.
À noite, passaram por Samur e pararam numa hospedaria para repousar. Martus,
jovial, brindava os noivos alegremente, na noite nupcial. Nalim, pressentindo o
novo perigo, quase não se alimentou. O hospedeiro arranjou-lhes um quarto
especial. À medida que o tempo avançava, mais a moça se sentia enervada.
Estava exausta, mas não desejava recolher-se. À certa altura, porém, Pecos
muito naturalmente despediu-se de todos e tomando a esposa pela mão, dirigiu-se
aos aposentos que lhes eram destinados. Lá chegados, após cerrar a porta, Pecos
olhou para a esposa. Estava visivelmente pálida e nervosa, encolhera-se a um
canto como fera acuada. Pecos, penalizado em virtude dos últimos sofrimentos
que Nalim suportara, decidiu ser brando para com ela. Aproximou-se dizendo:
– Por que estás nervosa? Acaso terás receio de mim? Vem cá, desejo conversar
contigo.
Vendo que ela não vinha, ele tomou-lhe a mãozinha fria. Todo aquele nervosismo
da moça comoveu-o. Por um instante, esqueceu-se de todo o passado de ódios e recalques para lembrar-se apenas de que amava aquela mulher e agora ela lhe
pertencia.
Cedendo à emoção, ele, com um gesto carinhoso, envolveu-a com seus braços,
beijando-lhe os cabeços, procurando-lhe a boca vermelha. Nalim, porém,
empurrando-o violentamente, respondeu-lhe ferina:
– Afasta-se. Teu desejo me ofende e me inspira asco! Casei-me contigo, é
verdade, mas forçada pelas circunstâncias. Sou tua esposa, porém se puseres tuas
mãos imundas sobre mim, juro que me matarei. Nosso ódio é recíproco. Se a
situação me coloca hoje à tua mercê, não significa que eu não me defenda do
teu contato. Teu gesto, querendo aproveitar-se da situação em que me encontro, é
digno de tua covardia!
Pecos estava lívido! Apenas um imperceptível estremecimento de quando em
quando denotava seu estado de ânimo.
Seu orgulho de homem fora fortemente atingido, porém, ele ainda encontrou
forças para dizer:
– Estás enganada a meu respeito. Eu seria incapaz de um gesto menos honroso.
Se nesta noite te abri meus braços foi porque desejei proporcionar-te o amparo
de que necessitas. Apesar do que aconteceu entre nós, não guardo rancor.
Acreditava sinceramente que poderíamos vir a viver juntos e construir uma
felicidade duradoura. Estamos ligados pelos deuses, nosso sangue é um só! Eu
sentia o desejo sincero de amparar-te e oferecer-te meu amor, porém, nesta
noite tuas palavras me demonstraram a maldade de tua alma. Podes estar certa,
eu não tornarei a abraçar-te, não terás mais teu corpo maculado pelo toque de
minhas mãos. Só voltarei a fazê-lo no dia em que me pedires. Esteja tranqüila,
não mais te incomodarei.
Assim, Pecos retirou-se sem esperar resposta, deixando a moça infeliz e
confundida. Ele lhe falara de amor, seria possível? Poderia acreditar que ele a
amasse realmente?
Nalim, na angustiosa situação de solidão em que se encontrava, começou a
pensar como seria bom ter descansado a cabeça em seus ombros fortes.
Surpreendeu-se arrependida de tudo quanto lhe dissera.
Amargurada, infeliz, insegura de si mesma, quase não dormiu a noite toda. Onde
teria ele ido dormir? E se ele fosse embora e a deixasse ali? Não. Ele não seria capaz!
Um mundo de pensamentos loucos lhe agitava o cérebro.
O dia seguinte encontrou a moça ainda insone. Pecos bateu à porta, chamando-a.
Levantou-se às pressas e foi abri-la.
Ansiosa, olho o rosto do marido. Ele era o mesmo de sempre. Disse-lhe
friamente:
– Apressa-te; partiremos daqui a pouco. Precisamos sair antes que o dia desça de
todo.
Pouco depois, os viajantes continuavam a viagem rumo a Tebas. Nos corações
dos jovens esposos, a amargura e o orgulho já haviam consolidado suas bases,
sufocando o amor e a compreensão que brotara neles. A vida para eles era
incerta, infeliz, e nada contribuía para modificar aquela situação.

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