Esquecimento, remédio para a alma
Dez anos são passados. Embora a situação na casa de Pecos seja a mesma, as
pessoas mudaram.
Jasar continua em sua elevada tarefa de espiritualização das criaturas. Um pouco
grisalho, conserva o mesmo porte. Mais amadurecido, seu rosto refletia a
bondade de seu espírito.
Nalim modificara-se sensivelmente. Sua tristeza ainda transparecia em seus
belos olhos negros. Porém, agora, já havia em seu rosto uma expressão mais
amena de resignação.
Como conseguira Jasar tal transformação? A princípio, tentara vários expedientes
sem obter resultados. Um dia, porém, resolveu levá-la consigo em visita aos
enfermos e necessitados. Conhecia-lhe o temperamento arrebatado, amoroso até
a meiguice.
Para convencê-la a acompanhá-lo. pediu-lhe ajuda no tratamento de um
paciente. Com certa indiferença, não querendo negar um obséquio ao cunhado a
quem tanto devia, ela aceito e juntos saíram ao romper do dia, levando Pitar, que
tagarelava alegre durante o trajeto.
Caminharam durante muito tempo, chegando finalmente ao humilde casebre em
miseráveis condições e onde faltava o necessário. Foram recebidos à
porta por um casal de velhos um tanto acanhados com a presença dela e que os
convidaram a entrar.
Sentindo uma certa repugnância, pois gostava do luxo e do conforto, ela penetrou
na pequena sala, seguida pelo cunhado e pelo filho. Enquanto conversavam, Jasar
e os donos da casa, Nalim pensava no amargo destino das criaturas que eram
forçadas a viver em tal situação. Despertou de suas reflexões, quando ouviu Jasar
convidá-la para entrar no quarto da enferma. Segui-o, mas assim que penetrou
no aposento, sentiu-se dominada por grande emoção.
Estendida sobre um pequeno leito, jazia pálida uma linda criança. Seu rostinho
emagrecido conservava-se belo, apesar dos sofrimentos físicos que nele
transparecia. Comoveu-se.
Enternecida, acercou-se dela, que deveria contar seis ou sete anos, pousou-lhe a mão na fronte em um gesto espontâneo, acariciando-a levemente. A pequena
abriu os olhos e vendo-a debruçada sobre o leito, sorriu. Jasar assistiu à cena
satisfeito. Ao cabo de alguns instantes, Nalim tomou conta da situação. Inteirou-
se de tudo quanto dizia respeito àquela gente, procurando orientá-los nos
problemas domésticos, prontificando-se dali em diante a auxiliá-los.
Soube que a pequena contava oito anos e chamava-se Sinat. Sendo órfã de pai e
mãe desde tenra idade, fora criada pelos avós paternos, pobres velhos lavradores
que devido à sua saúde precária haviam chegado à mais extrema miséria.
Comovida com a espontânea amizade de Pitar pela pequena e principalmente
pela sua orfandade, sentiu desejo de ajudá-los. Quando se retiraram da pequena
casa, Nalim estava interessada nos problemas daquela família, e Jasar sentia que
conseguira seu objetivo. Ela humanizara-se, por fim, voltando a interessar-se
pelos outros. Dias depois, com aprovação de Jasar, ela resolveu levar seus
protegidos para os seus domínios, instalando-os com relativo conforto em
pequena mas alegre habitação.
Tratou da pequena Sinat com desvelo e carinho, cuidando da sua alimentação
pois que sua enfermidade era proveniente de grande anemia, trazida pela miséria
em que vivera.
Jasar, receando que Nalim recaísse em seu estado anterior e querendo estimular
sua bondade, convidou-a muitas vezes e ela acabou por gostar daquelas
atividades que lhe causavam tanto bem-estar, fazendo-a esquecer sua tristeza.
Acabou por tornar-se assídua colaboradora de Jasar sem preocupar com a
ingratidão de alguns, sentindo o prazer de ajudar.
Sinat estava agora com 18 anos. Quando seus avós morreram, Nalim, que a
estimava sinceramente, trouxera-a para casa, onde a tratava como filha. A moça
conquistara a estima geral e Nalim a apreciava muitíssimo. Seus traços lhe
recordavam Solimar, de quem nunca se havia esquecido. Ela e Jasar falavam
muito nela recordando agradáveis momentos que haviam desfrutado a seu lado.
Pitar era agora um jovem de vinte anos, belo e forte. Como o pai, abraçara a
carreira militar, contrariando os desejos da mãe. Mas, apesar de adorá-la, ele
não podia resistir ao fascínio que lhe causava tal carreira. Incapaz de contrariá-
lo, Nalim concordara por fim, e ele ingressara no exército do Faraó, valendo-se
do prestígio do pai. Seu temperamento alegre e sincero despertava a simpatia de
todos. Como seu pai, possuía olhar e sorriso fascinantes.
E Otias? Encerrada na redoma do corpo imóvel, também sofrera modificações
com o correr dos anos. Muda testemunha dos acontecimentos, percebera coisas que antes não via. A hipocrisia das amizades mundanas que tanto cultivava e que
ao vê-la agora, dela se afastaram com evidente repulsa. A dedicação do marido
aumentava-lhe ainda mais os torturantes remorsos. Muitas vezes se perguntava
por onde andaria Solimar. Durante os primeiros anos de sua imobilidade, vivera
voltada quase exclusivamente para sua tragédia, com amargura, revolta e horror.
Mas, agora, depois de tanto tempo, havia se modificado. Já não tentava
inutilmente sair daquela situação. Por vezes era acometida de um medo terrível.
Começava a perceber o cruel engano que a arrastara ao crime hediondo.
Contudo, seu coração ainda permanecia endurecido pelo rancor e pelo ciúme.
Odiava Nalim porque esta era bela e perfeita, odiava a mocidade de Sinat porque
lhe recordava o que perdera, odiava a Pitar porque lembrava-lhe o filho que era
seu constante tormento. Somente a Jasar ela amava! Seu coração inundava-se de
luz quando ele se aproximava, sereno, bondoso, dedicado. Suas palavras
confortadoras ajudavam-na a tolerar o inferno em que vivia submersa. Seus
cabelos totalmente embranquecidos, sua extrema magreza, sua pele macilenta,
nada recordava a Otias de ontem, cheia de mocidade e beleza. Triste destino
para uma vaidosa mulher!
Seu estado de saúde era precário, fisicamente estava fraca e cansada, porém seu
espírito lutava, porque temia a morte do corpo. Não possuía a luz confortadora do
conhecimento de Deus e de suas santas leis, e carregava o subconsciente
saturado de penosas passagens que vivera em outras existências após o
desencarne.
Assim estavam os acontecimentos na casa de Pecos, depois de tantos anos
decorridos, mas... e ele? Teria realmente morrido?
Voltemos novamente o relógio do tempo e procuremos investigar o que lhe
acontecera.
Atirado pelos soldados de Farfah nas areias escaldantes do deserto, inconsciente e
enfermo, naquele dia terrível, Pecos estava realmente destinado a uma morte
lenta e horrível. As horas se sucediam e o crepúsculo se aproximava. O
moribundo, às vezes, agitava-se e gemia fracamente.
Na paisagem, só areia, areia e céu de um azul magnífico, coberto roseamente
pelos últimos raios solares. Tudo era silêncio e quietude. O ar parado e o
mormaço característico daquela região tornavam-na quase irreal. De repente,
rasgando o silêncio, um tropel de cavalos se fez ouvir à
distância. O ruído tornou-se mais forte e aos poucos foi se aproximando do enfermo. Tratava-se de uma caravana de mercadores.
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O Amor Venceu
SpirituellesLivro de 1958 Esta obra conta uma história que se passa na cidade de Tebas, no Egito antigo. Narra a dor do amor impossível entre dois casais, que buscam resgatar a sua verdadeira existência. Fundamentado nas leis da reencarnação, procura explicar o...