CAPÍTULO V

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O encontro

A noite estrelada de Tebas refletia-se mansamente em todo seu mistério
profundo, no lago azul que enfeitava o jardim exuberante da casa de Pecos.
Quebrando, porém, o silêncio cadente da noite, numerosas pessoas caminhavam
por suas aléias floridas e perfumadas, palestrando animada e alegremente. Todo
o aspecto era festivo. Nos salões que há muito não se abriam, reunia-se a fina
flor da sociedade daquela época, em uma comemoração verdadeiramente bem
lembrada.
O motivo daquela noite engalanada na luxuosa mansão era bem compreensível.
Pecos, como de praxe, levara seus parentes à corte para renderem homenagens
ao Faraó. Este, que já os conhecia, recebera-os cordialmente e depois dessa
cerimônia regular, convidara Pecos as melhores famílias da corte para uma
recepção em sua casa a fim de apresentar oficialmente a prima, proporcionando
também ocasião ao irmão e a seu tio, de reatarem velhas amizades.
A festa ia em meio. Tudo estava bem preparado, demonstrando perfeitamente o
bom gosto dos donos da casa.
Sentado em um banco rústico de pedra, Jasar descansava, de olhos semicerrados,
imerso em seus pensamentos íntimos. De repente sentiu alguém baterlhe
levemente nos ombros. Sobressaltou-se, saindo abruptamente de seu mundo
interior. Sossegou ao fitar o rosto de Otias e ouvir seu riso cristalino.
– Então, gato selvagem, não quiseste permanecer junto aos convivas e te
escondeste aqui? Descobri-te apesar de tudo! – Otias falava sem poder disfarçar
o tom emocionado de sua voz.
– Não importa, cara prima. Apenas tu sabes que prefiro estar só com meus
pensamentos que bem conheço a abandoná-los para enfrentar a hipocrisia
humana.
– És impiedoso, Jasar. Não creio que sejam tão maus como pintas. Inúmeras
moças devem estar lamentando tua ausência – havia na voz de Otias um quê de
despeito ao pronunciar tal frase.
Jasar fitou-a sereno:
– Otias, bem sabes que não tenho interesse em conhecer mulher alguma. Sinto me bem assim como sou, meio selvagem. Muitas vezes, as mulheres, atrás de
belos olhos e doces sorrisos, encobrem o negror de sua alma, – parou, notando o
embaraço da prima e ajuntou – existem pérolas que não são falsas, mas somente
um perito pode reconhecê-las. Assim, abstenho-me de adquiri-las porque mais
vale não as possuir, admirando-as em outros, do que descobrir-lhes o pouco valor
com o correr do tempo.
Otias sentara-se ao lado do primo. Seu sangue fervia. A alusão velada do moço
feria seu orgulho. Mas ela não reagiu. Desejava reconquistá-lo a qualquer preço.
Sua indiferença era exasperante. Poderia tê-lo aos pés, mas não soubera agir
para conquistá-lo. Quando o rapaz hospedara-se em sua casa, a fim de
regressarem juntos, notara seu interesse. Certa da vitória fácil, abusara,
mostrando-se tal qual era. Fizera o propósito de conquistá-lo de qualquer modo.
Estava disposta a usar todos os recursos para tal. Respondeu sorrindo:
– Não pensei que fizesses tal juízo das mulheres. Gostaria de ajudar-te a
descobrir tua pérola verdadeira.
Os belos olhos de Jasar brilharam com ironia e prazer. Divertia-o um pouco a
atitude da prima. Não que sentisse prazer em contrariá-la, mas não acreditava
que ela o amasse como deixava transparecer. Conhecia-a melhor do que ela
poderia imaginar e acompanhava suas reações com interesse puramente
experimental. Percebera seu caráter frio, orgulhoso, sua vaidade que não queria
admitir seu desinteresse.
A princípio, quando a tornara a ver, depois de tantos anos, sentira-se um pouco
impressionado pela sua beleza física e o demonstrara, mas os dias que convivera
com ela o haviam desiludido. Profundo observador, seguira-lhe os movimentos,
embora aparentando entreter-se com outras coisas e pudera notar a maneira pela
qual tratava suas escravas, as pessoas de suas relações e mesmo o velho pai.
Assim, o pouco entusiasmo que ela havia despertado em seu coração
desaparecera. Ela, coquete, mulher consciente de sua beleza, sentira-se a
princípio vagamente inquieta, depois, deprimida e depois ainda, interessada
vivamente em reconquistá-lo.
Não haviam conversado francamente a esse respeito, porém, havia qualquer
coisa no ar sempre que conversavam. Ela, procurando envolvê-lo com sua
sedução, recordando-lhe o passado interesse, ele, divertido e indiferente,
encarando a situação como um capricho da moça.
– Otias, acho que melhor farias regressando ao salão. Devem esperar-te para as
comemorações. És a deusa que hoje irradia suas graças aos pobres mortais! A festa é tua! Os muitos trovadores galantes devem estar à tua espera, tecendo
madrigais. Não seria bonito que te chamassem selvagem, como o disseram de
mim ainda há pouco!
Amoça viu o brilho malicioso do olhar de Jasar e não se conteve:
– Queres que eu vá embora, porque te importuno. Irei. Com certeza lá
encontrarei teu irmão, que talvez não seja tão mal-educado como tu e sinta
prazer em minha companhia.
Com as faces em fogo, Otias levantou-se e voltando-lhe as costas, retirouse
nervosa. Jasar suspirou. Afinal fora rude para com ela, mas seria melhor que não
tivesse ilusões a seu respeito. Nunca seria capaz de amá-la. Levantou-se um
pouco entediado. Não gostava do barulho e da agitação das festas. Procuraria um
lugar onde pudesse meditar à vontade.
Começou a caminhar a esmo, perdido em meditações profundas. Necessitava de
luz, de conhecimentos. Não descansava com o incontável número de perguntas
que formulava a si mesmo a cada instante. Precisava trabalhar, estudar,
observar.
Estava tão embebido que não notou que se distanciava muito dos salões.
Enveredou pelo parque, situado atrás dos grandes celeiros e da enorme
estrebaria. Caminhou mais um pouco, até chegar a um adorável recanto, onde a
natureza tecera um aprazível espetáculo. Sentou-se em um pedaço de pedra,
colocado ao pé de uma árvore, com certeza por alguém que devia gostar daquele
lugar. – Creio que alguém tem vindo aqui constantemente – pensou ele – e esse
alguém tem muito bom gosto, o lugar é realmente agradável. Seus pensamentos
divagavam no mundo exuberante do seu conhecimento. De repente, passos
apressados fizeram-se ouvir, quebrando o fio de suas meditações. Alguém
arfando, soluçante, deixou-se escorregar mansamente ao lado do moço, sem
ainda o ter visto. Era um vulto de mulher e evidentemente escondia-se de alguém
que a perseguia. Ao vê-lo, engoliu a custo um grito assustado. Transida de pavor,
impôs-lhe silêncio com um gesto. Ouviram-se passos e uma voz praguejando na
sombra.
– Tu não me escapas, pequena! Hei de alcançar-te de qualquer forma!
Quem está aí? – berrou – saia. Não adianta, porque já te encontrei.
– Que queres tu, Solias, e a quem procuras? – perguntou tranqüilamente Jasar,
levantando-se, saindo por detrás da grande árvore, medindo a altura do subalterno de seu irmão. Tratava-se de um soldado de Pecos que, sendo de sua
escolta pessoal, morava na casa.
– Perdoai-me, senhor! Perseguia uma escrava ladra. Furtou-me três ânforas de
óleo preciosamente aromatizado. Apanhei-a no momento exato em que cometia
o roubo, mas escapou-me.
– Está certo, Solias, vai em paz; aqui não passou ninguém! Com certeza, foi pelo
outro caminho que conduz à estrada.
– Desculpai-me, senhor. Vou procurá-la novamente. Talvez eu não tenha visto
bem, mas o vinho, a festa, puseram-me entontecido.
Assim, um tanto inseguro, Solias retirou-se.
Quando o rumor de seus passos perdeu-se nas sombras da noite, Jasar retornou
ao seu lugar, procurando com os olhos o vulto da moça. Ela encolhera-se a um
canto e conservava-se calada. Apenas uns estremecimentos nervosos a
percorriam de quando em quando, demonstrando seu estado de espírito. Jasar,
levemente tocado por um sentimento de piedade, sentou-se a seu lado indagando:
– Conta-me a verdade, pequena.
Ela olhou-o. Seus grandes olhos verdes exprimiam gratidão profunda. Quando
falou, sua doce voz sussurrava apenas:
– Senhor, grande é vossa bondade. Nunca esquecerei a delicadeza que tivestes
para comigo. Sou escrava, senhor! Cumpro o meu destino traçado por uma
vontade que nos é superior, mas jamais manchei minha alma com um furto.
Nem sequer meu pensamento jamais cometeu tal crime!
– Pobre pequena! Tens febre!
Tomando-lhe o pulso delicadamente, sentiu-lhe o latejar das veias.
– Tuas mãos estão geladas. Precisa repousar, renovar o ânimo. O que aconteceu?
Conta-me, como te chamas?
– Chamo-me Solimar, senhor. Faz três meses que fui capturada e trazida da
Tebaida e como sabeis, sirvo como escrava. Mas, se soube habituar-me à
vontade do Senhor que dirige nossos destinos, não posso tolerar sem revolta
atentados contra a pureza de minha alma, como acaba de acontecer!
À medida que sua voz trêmula discorria sobre suas tristezas, Jasar enternecia-se ao conhecer o drama daquela criaturinha. Ele não podia admitir a escravidão de
forma alguma. Reprovava intimamente a conduta do irmão, admirava ao
mesmo tempo o estoicismo da moça.
– Há muito, vinha notando os olhares de Solias sempre que de mim se
aproximava. Por isso, preveni-me contra ele, chegando mesmo a evitá-lo, Esta
noite, porém, ele bebeu muito vinho e descobrindo-me em um recanto obscuro
donde observava a festa, quis abraçar-me à força tapando-me a boca com uma
das mãos. Nem sei como consegui desvencilhar-me dele e corri
desesperadamente para aqui, pois sempre tenho me refugiado neste recanto para
meditar e repousar um pouco de minhas obrigações. Tenho receio! Solias é mau.
Será capaz de tudo para obter o que deseja.
– Nada receie, Solimar! Falarei com meu irmão e pedirei a transferência de
Solias para outro setor. Por ora, receio pelo teu estado de saúde. Talvez possa
fazer algo por ti. Um dia, quando viajava para as grandes muralhas de Amedas,
às margens do grande mar, senti-me muito mal. O sol fora muito forte e minha
cabeça estalava de dor. Sentei-me à beira do caminho, apertando a cabeça entre
as mãos. Então, ouvi uma voz a meu lado, dizendo:
– O sol do deserto fez-te mal. Não devias ter abusado de tua resistência. Mas és
jovem e teu sofrimento me oprime, vou curar-te!
Olhei o velho que assim me falava tão estranhamente. Ele então ensinoume um
método seguro com o qual me curou. Agora vou experimentá-lo contigo. Já o
tenho feito muitas vezes quando em visita aos doentes, sempre com bons
resultados.
Olha para mim, bem nos olhos. Não penses em nada... Não tens pensamento, não
existes... Apenas és uma centelha de energia em contato com as vibrações da
vida... Teu espírito pede paz, repouso, sossego... Jasar falava pausadamente,
enquanto os olhos, fixos nas verdes pupilas de Solimar, ordenavam com firmeza.
A cabeça da moça pendeu para o lado. Jasar amparou-a com o braço,
repousando-lhe a cabeça sobre o seu ombro. Comoveuse diante daquele lindo
rosto banhado pela luz envolvente do luar.
– Quase uma criança – pensou. Depois, colocando a mão direita sobre sua fronte,
disse:
– Dorme, Solimar. Quando acordares, tudo terá passado. Foi um mau sonho que
esquecerás. Defender-te-ei de agora em diante, nada temas. Os lábios dela
entreabriram-se em um doce sorriso. Dormia. Ele continuava a sustê-la
delicadamente.

Dali a alguns instantes, Solimar despertou. Um tanto surpresa, mas sentindo-se
bem. Ruborizou-se em seguida, com a proximidade do moço, que retirou seu
braço prontamente.
– Estás melhor? – indagou.
– Sim. Oh! senhor, jamais poderei pagar-vos tanta bondade!
Depois de um impulso tomou-lhe uma das mãos, levando-as aos lábios com
reconhecimento e antes que Jasar voltasse a si da surpresa, fugiu a correr. Ele
permaneceu ainda preso ao solo, olhando as costas da mão que recebera tão
eloqüente agradecimento. Emocionado, compreendendo a delicadeza profunda
daquele gesto nobre de mulher, sentia na mão a umidade de uma lágrima que a
noite encobria.
Permaneceu por mais algum tempo preso ao fio de seus pensamentos
inesperados. Depois, retornou à sala onde deveriam ter-lhe já notado a
prolongada ausência.
– Hórus vos proteja, caro Jasar!
– És tu, Primatur, que desejas?
– Está aí uma dama que vos deseja falar, – anunciou-lhe o escravo,
respeitosamente.
– A estas horas? Não lhe disseste que temos convivas?
– Sim, nobre senhor, mas ela insistiu dizendo que tem urgência em ver-vos.
– retornou ele.
– Que aspecto tem ela? Por que não me procura amanhã como seria mais
conveniente?
– É uma mulher de meia-idade, senhor, vestida decentemente. Não lhe vi o rosto
porque o cobre espesso véu. Apenas consegui vislumbrar parte de seus cabelos já
grisalhos.
– Está bem, Primatur. Onde está ela?
– Conduzir-vos-ei., senhor.

Jasar, extremamente intrigado, seguiu o escravo. Ele mal regressara e não
possuía relações que justificassem tal visita. Seus conhecidos estavam, em sua
maioria, na festa. O escravo conduziu-o a um agrupamento de pequenos arbustos
que marginavam a estrada.
Esperava-os um vulto de mulher.
– Podes ir, Primatur – ordenou Jasar, e dirigindo-se à mulher:
– Que desejas para que me procures dentro do avançado da noite?
– Senhor, minha vida corre perigo, mas nada temo. Apenas sei que se trama uma
conspiração contra a pessoa do grande Pecos – balbuciou ela, trêmula.
– Mas o que dizes é grave! Por que não o procuraste diretamente?
– Senhor, o nobre Pecos é muito tolerante, mas.. confio mais na vossa
compreensão! Com certeza mandaria prender-me e tudo estaria perdido, para
todos. – Explica-te, mulher, com clareza.
– Senhor, Rabonat... fugiu! Até agora os guardas não conseguiram encontrá-lo!
– Quem é Rabonat?
– É um dos escravos do grande Faraó. Odiava de morte o nobre Pecos, porque
ele o capturara. Chegou mesmo a atentar contra sua vida uma vez, logo que aqui
chegaram. O Faraó condenara-o à morte na ocasião, porém, o grãochefe Potiar
pediu clemência para ele, visto ser um belo homem que poderia prestar muitos
serviços no futuro. Foi condenado a trabalhar nas construções dos monumentos e
do templo que o grande Rá se empenha em construir. Depois de servir lá dois
anos de uma forma pacífica, conseguiu ser removido para cá. Meu filho, que
guarda o pátio onde trabalham os escravos, ouvira-o contar a um companheiro
que pretendia vingar-se do nobre Pecos. Meu filho julgou ser um desabafo do
odioso escravo, mas mesmo assim preveniu vosso irmão, que sorriu da ameaça.
Hoje Rabonat fugiu inesperadamente. Meu filho, que se encontrava de guarda,
nada viu. Temeroso, e como estava de serviço, pediu-me que vos prevenisse
porque suspeitamos ter Rabonat vindo para cá.
– Está bem, mulher. Podes ir sossegada, prevenirei meu irmão. A mulher
afastou-se rapidamente e Jasar, inquieto, pôs-se a pensar nas coisas estranhas que
lhe aconteceram naquela noite.
Voltou sobre seus passos para conversar com o irmão, prevenindo-o. Atravessava o jardim, rumo ao salão, quando um grito estridente de mulher rasgou a
serenidade da noite.
– É Otias, reconheceu Jasar. – Vem daquele canto!
Correndo, acercou-se do local de onde partira o grito. Ao vislumbrar o quadro
que se oferecia, exclamou emocionado:
– Cheguei muito tarde!

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