CAPÍTULO VII

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A dedicação de Solimar

As horas daquele triste dia para os que estimavam o enfermo, escoaram-se
monótonas e pesadas.
A escuridão desceu sobre Tebas, absorvendo pouco a pouco a claridade solar. Era
uma noite esplêndida! O calor persistia, convidando as pessoas que procurassem
a aragem fresca dos jardins perfumados e agradáveis.. Porém, na casa de
Pecos, a atmosfera de expectativa era quase dolorosa. O rapaz não obtivera
melhora, seu estado era quase desesperador.
Jasar, preocupado, não abandonava mais o quarto do irmão, vigilante,
medicando-o, temeroso de uma crise fatal.
Solimar velara todo o dia incansavelmente. Seu olhar ansioso percorria de
quando o rosto do enfermo e o de Jasar, com um aperto no amoroso coração. A
situação era sufocante. Jasar, a certa altura, levado pela incerteza do momento,
preocupado com Pecos, sentou-se ao lado da moça, esquecido da diferença de
suas posições naquela casa. Seu gesto foi espontâneo. Ela compreendeu, olhou-o
e sorriu procurando infundir-lhe coragem.
– Não sei – disse Jasar de repente – tenho a impressão de que nós três aqui
estamos repetindo a mesma cena, há muitos anos. Parece-me, neste instante, que
já tivemos anteriormente em uma tal situação. É uma sensação estranha que não
sei explicar!
– Talvez que em uma existência anterior nos tenhamos reunido, como agora.
Jasar não pôde disfarçar o prazer que lhe causaram as palavras da moça.
– Certo, Solimar. É possível que nos tenhamos encontrado anteriormente. Crês na
pluralidade das existências?
– Senhor, meu pai foi iniciado nas ciências ocultas. Estudou muito tempo, posso
mesmo dizer que toda sua vida. Costumava passar de quando em quando anos
inteiros internado em mosteiros nas grandes montanhas. Quando ele se
encontrava em casa trabalhando, eu tinha acesso livre ao seu laboratório e o
auxiliava em certas experiências. Sempre fui muito curiosa e ele me esclarecia
da melhor boa vontade. Assim, pude compreender a maravilha das leis que
obedecemos, nascendo, morrendo, tornando a nascer e a morrer, sempre em
busca da perfeição espiritual, sempre em busca de Deus.

Jasar estava agradavelmente surpreendido. Ele não esperava encontrar na
escrava a única pessoa que poderia compreendê-lo naquela casa, onde todos
pensavam superficialmente, sem alcançarem as profundezas dos seus
sentimentos mais sutis.
– Não sabes, pequena, o prazer que sinto em conhecer-te. Nós possuímos o
mesmo ideal comum, a mesma crença.
Suspirou profundamente e começou a contar:
– Certa vez, eu caminhava pelas longas e poeirentas estradas que levam a
Tebara, marginando o Nilo, quando a noite surpreendeu-me só e cansado. Havia
saído de casa rumo ao desconhecido, ávido de saber, guiado mesmo por uma
força interior. Embora habituado às pequenas excursões que realizava
freqüentemente, não havia ainda empreendido uma tão longa viagem. Exausto,
divisei uma gruta, muito pequena, circundada por pequeno bosque, à beira do
caminho. Uma vez lá, preparava-me para repousar em seu duro solo quando
percebi que não estava só. Um homem ali repousava. Ao ver-me, levantou-se,
vindo ao meu encontro. Era idoso mas forte ainda. Seu aspecto, embora coberto
de poeira e vestido pobremente, denotava espiritualidade e nobreza de
sentimentos.
Murmurei vagamente umas desculpas por incomodá-lo e já ia retirar-me quando
ele, tomando-me pelo braço, disse:
– Fica, filho. O teto que nos abriga é suficiente para dois. Repousa porque vens de
longe e estás cansado. Mas teu cansaço não é só do corpo, mas sim do espírito
que tateia nas sombras e procura a luz.
Deixei-me cair ao chão, admirado. Quando o vi sentado ao meu lado, perguntei:
– Como soubestes que vim de longe e estou cansado?
– Facilmente. Pode-se notar pela poeira que te cobre, pela maneira que
caminhas!
– Mas... e a minha sede de conhecimentos, como a descobriste?
– Pela expressão do teu rosto. O corpo, meu filho, é o espelho onde se reflete o
espírito. Assim como ele me contou pelo aspecto de tuas vestes tua procedência,
teus olhos, teus gestos, tua expressão, refletem o que te vai no íntimo. Existem
muitas maneiras de estudarmos um homem e sempre suas obras falarão do seu
coração, mas ao observador mais atento, será fácil devassar-lhe o íntimo, pela aparência exterior. Se um homem é escravo da vaidade, fatalmente se trajará
com apuro, se usurário, terá vestes cuidadas, porém, surradas. Se pobre, além da
roupa surrada, terá também a vergonha e assim por diante. Poderemos conhecer
um homem à primeira vista. Um simples gesto, em conjunto com seu aspecto
exterior, nos revela sua história e sua personalidade. Conversamos ainda longo
tempo. Eu me sentia deslumbrado com tanta compreensão das coisas e das
pessoas. Permaneci ao seu lado durante dois anos, aprendendo sempre de seus
exemplos naquela pequena gruta. Vivíamos felizes, alimentando-nos
exclusivamente de frutos e pão que trocávamos duas vezes por semana com
mercadores em trânsito pela estrada.
Jasar calou-se, descerrando as pálpebras que cerrara para melhor evocar o
passado. Olhou para a moça e observando-lhe o interesse, continuou:
– Certo dia, Silas, assim se chamava ele, chamou-me e disse:
– Filho, quando vieste, naquela noite, há muitos sóis e luas eu te esperava. Sabia
que seria procurado por ti e que ficarias comigo até este tempo. Meu guia
familiar mo havia predito, antes de conhecer-te. Ordenou-me instruir-te sobre as
verdades espirituais e te preparar para tua futura missão. Em passada existência,
falhaste como sacerdote de Hórus e não cumpriste bem a tua tarefa. Devo
prevenir-te, porém, que apesar desta vez não te ser permitido seguir a missão
sacerdotal, terás oportunidades melhores do que no passado, se souberes escolhê-
las e segui-las. Deves partir rumo à Ásia hoje mesmo. Lá, onde permanecerás
percorrendo as aldeias durante seis anos, terás oportunidades enormes de
aprendizado. Depois, será necessário que retornes ao lar. Assim que puderes,
volta aqui para ver-me e o resto dir-te-ei quando vieres. Parti como me ordenara
e senti muito a despedida. Voltei-me muitas vezes para acenar-lhe, emocionado.
Ainda agora parece-me vê-lo pálido, forte, mais no espírito do que no corpo,
com os olhos marejados a dizer-me adeus. Tudo quanto ele me disse sobre os
conhecimentos, realizou-se. É-me grato recordar o homem que iluminou meu
entendimento com a luz do seu espírito lúcido e esclarecido.
– Nunca voltaste lá como prometera? – indagou Solimar algo curiosa.
– Ainda não. Esperava fazê-lo brevemente. Agora naturalmente, serei forçado a
esperar.
Ainda trocaram mais algumas palavras sobre o assunto. Uma amizade real e
franca despontara entre eles. Suas almas estavam unidas pelos mesmos ideais de
espiritualidade, embora estivessem muito longe um do outro pelas posições que ocupavam.

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