CAPÍTULO VI

826 38 0
                                    

A vingança

Pecos estava particularmente alegre naquela noite. A festa estava realmente
maravilhosa! Havia no ar influxos estranhos, embriagantes, que o predispunham
às aventuras, ao romantismo.
Tudo corria a contento. Cortiah, Solimar e Nalim tinham sido as organizadoras da
brilhante recepção, e ele não podia deixar de reconhecer todo o bom gosto das
três mulheres que há muito haviam se recolhido. Como era costume na época, as
escravas ocultavam-se aos convivas, e somente os escravos serviam.
Pecos, orgulhosamente, apresentava a prima aos amigos, envaidecido pela sua
elegância, formosura, pela sua maneira altiva e ao mesmo tempo gentil de
receber os convivas, revelando-se uma grande dama.
À certa altura, procurou a prima com o olhar e não a encontrando, saiu à
sua procura. Precisava falar-lhe, como era de seu intento, sobre as possibilidades
de um futuro próximo entre eles.
Não conseguindo encontrá-la, impacientem, chamou Jertsaida que o informou
ter visto Otias dirigir-se aos seus aposentos. Resolvido a procurá-la, alegre e
entusiasta, ajudado em parte pelo vinho, dirigiu-se aos aposentos da prima. Ao
invés de ir pelo interior da casa, como sentia muito calor, circundou o pátio
externo que dava para os aposentos que buscava.
Quando se aproximava da porta, teve a atenção desviada para o pátio vizinho,
separado por uma sebe florida e onde ficava a habitação das escravas. Este,
àquela hora da noite estava deserto, porém, uma figura de mulher deslizava por
ele, executando um bailado esquisito e sensual, utilizando-se da música que vinha
do interior dos salões.
Extático, amigo das artes e da beleza, observou alguns instantes as ondulações
daquele corpo perfeito; depois, quase sem perceber, caminhou para lá,
esquecendo de tudo, fascinado por aquele quadro estranho. Sob a luz bruxuleante
de uma tocha, permanentemente colocada em uma pira no centro do pátio, ela
rodopiava, com os pés nus e a túnica rutilante luzindo, cintilando aos reflexos da
lua.
Ele permaneceu observando, reconhecendo nela sua escrava Nalim. A moça, amante das festas e de luxo, vestira sua velha túnica luzidia e sonhava com a
grandeza de sua gente e de seu passado. Ao ver-se observada, reconheceu-o e
dirigiu-se a ele, continuando a dançar ao seu redor. Ele olhava-a surpreendido e
fascinado, sem poder desviar seus olhos dos dela, que expeliam chispas.
Nalim, rodopiando em círculos, estava cada vez mais perto!
Pecos sentia seu hálito quente roçando-lhe as faces. Ela não parecia real, com os
lábios entreabertos em um sorriso vago. As mãos curvas tecendo arabescos no
ar, envolviam-na numa rede de tentações perigosas!
Quando ela apertou o círculo, ele sem poder conter-se, agarrou-a com força,
beijando-lhe a boca rubra e perfumada. Ela retribuiu-lhe o beijo, porém, quando
ele ia fazê-lo de novo, inesperadamente fugiu-lhe, esgueirando-se por entre as
inúmeras portas da habitação.
Pecos ficou um instante interdito. Sentia nos lábios o sabor daquele beijo, no
corpo, a proximidade daquela mulher fascinante! Sentia ímpetos de procurá-la
para repetir aquela sensação inebriante.
Mas, de repente, caiu em si . Ele fraquejara a ponto de deixar-se fascinar por
uma escrava! Suspirou fundo. Talvez fosse o vinho, pensou, tentando desculpar-se
perante a própria consciência, mas logo recordou-se de tudo e da fascinação
daquela mulher. Reconheceu que ninguém poderia ter-lhe resistido e ele muito
menos, ainda que não estivesse sob o efeito do vinho. A fuga de Nalim o
exasperava e, ao mesmo tempo, o convencia de que havia sido muito melhor
assim. Caminhou novamente para o salão, já sem vontade de conversar com a
prima.
Momentos depois, Otias foi quem o procurou com um sorriso, pedindo que lhe
fizesse um pouco de companhia. Ele aquiesceu e juntos caminharam pelos
jardins. Pecos já não sentia vontade de fazer projetos com a prima e estava
imerso em profundos pensamentos.
Ela, porém, não desejava vê-lo calado. Resolvera conquistá-lo a fim de
enciumar Jasar. Pensava provar-lhe que era atraente e poderia conquistar
mesmo o inconquistável Pecos. Fora essa fama do primo que a induzira a criar
tal plano. Quanto mais experiente e indiferente ele fosse com as mulheres, mais
valorizaria sua conquista. Jasar haveria de suplicar-lhe seu amor de joelhos. Otias
analisava Jasar de acordo com sua própria forma de sentir.
Assim, errou completamente formulando tal plano, porque Jasar, mesmo que
viesse a sentir algum interesse por ela, nunca a disputaria com seu irmão. Ele sabia que o amor deve ser espontâneo e nunca fruto de um exclusivismo egoísta,
seja ela sob que motivo for, e Jasar tinha uma forma mais clara e elevada de
analisar as coisas do que a prima.
– Desejo agradecer-te, Pecos, tudo quanto tens feito por nós. Acolheste-nos em
tua casa e ainda nos honras com uma festa tão maravilhosa! Somente um
homem como tu poderia conhecer e adivinhar os desejos do meu coração de
mulher. És um primo perfeito.
Ela sorria e havia um mundo de promessas em seu olhar! Caminhavam ao longo
das aléias floridas balsamizadas pelo aroma das flores abundantes. Ele sorriu
envaidecido pela lisonja da prima e respondeu:
– Tudo me é mais fácil desde que seja para ti e para agradar-te. Sabes, preciso
falar-te sobre um assunto muito sério. Vem. Senta-te aqui ao meu lado. Conduziu-
a para um dos bancos rústicos que marginavam a sebe florida. Ela seguiu-o,
cedendo ao fascínio que Pecos irradiava na voz e no olhar. Sentaram-se ambos.
Tomando-lhe uma das pequeninas mãos entre as suas, disse-lhe ternamente:
Lembras-te de quando éramos crianças e tu moravas na velha casa onde
nasceste? Nós nos reuníamos aqui para nossos folguedos.
– Sim – disse ela.
– Pois bem, naquele tempo já eras uma linda menina e lembro-me bem que
brincávamos de lanceiros, sendo que tu...
De repente, um vulto saltou sobre a sebe que os ladeava. Pecos sentiu que algo
frio lhe trespassava o peito e logo uma golfada quente manchava-lhe a túnica.
Otias, apavorada, gritava por socorro, amparando Pecos que perdia as forças. O
agressor misterioso, tão rápido como viera, desaparecera. Pecos, atordoado, com
uma dor fina a pungir-lhe o peito, olhos enevoando, disse fracamente:
– Desta vez acertaram-me! Creio que vou morrer...
Seu corpo arquejou e pendeu sem sentidos no instante exato em que Jasar,
atraído pelos gritos de Otias, chegava ao local. O moço, auxiliado pela prima que
embora branca e trêmula mantivera-se firme, colocou Pecos ao comprido sobre
o banco, tomando-lhe o pulso.
– Bate, mas precisamos salvá-lo. Ajudem-me a transportá-lo – pediu ele aos
escravos que já agora os cercavam.

O Amor VenceuOnde histórias criam vida. Descubra agora