CAPÍTULO XVII

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O suplício do remorso

Deixemos agora que a cortina do tempo desça sobre esta história para voltarmos
a ela no tempo oportuno. Dez anos passados quando retornamos a Tebas.
Encontramos Pecos abatido e emagrecido nos jardins da casa, em palestra com
Nalim. Esta, um pouco mudada, é agora mais mulher. Seu rosto formoso que
humanizara-se com o correr dos anos, estava marcado pela preocupação. Em
Pecos, a transformação era marcante. Seu corpo emagrecido e seus cabelos
grisalhos modificaram-lhe o antigo aspecto. Apenas os olhos continuavam os
mesmos, irradiando a antiga atração.
Ele dizia:
– Estou magoado, Nalim. Sabes que fui sempre leal ao soberano. Apenas agora
vejo as coisas de maneira diferente. Já sabes por que tenho me recusado a
realizar as antigas caçadas. Hoje não teria coragem para fazê-lo. Se antes eu
julgava agir com acerto, hoje reconheço a antiga covardia. Não. Ainda que me
desprezem, não agirei novamente como um gatuno covarde.
– Mas... tu podes alegar um estado de saúde deficiente, alguma enfermidade,
sem ofenderes o soberano com a sinceridade dos teus pontos de vista. – Não.
Sempre assumi a inteira responsabilidade dos meus atos. Seria duas vezes
covarde se encobrisse um sentimento de nobreza.
– Sei que tens sofrido a ironia dos teus amigos!
– Amigos! Agora começo a perceber que nunca os tive. Eram-no quando eu
estava no apogeu de minha carreira, nas graças do Faraó. Agora que ele,
considerando-me um covarde por haver pela quinta vez me recusado a chefiar
uma caçada humana, reduziu-me a um soldado comum, todos eles me
escarnecem e claramente mostram o valor de sua estima, baseada na fictícia
glória política. E sabes por quem fui substituído? Por Omar, que me odeia de
morte por amor a ti!
Nalim, acercando-se mais do marido, passou-lhe o braço sobre os ombros,
dizendo carinhosa:
– Sabes que nunca o amei! Já contei tudo. O meu amor por ti é superior a tudo
quanto possa acontecer-te. Estes anos de intensa ventura que me proporcionaste,
varrendo as injúrias do passado, consolidaram a minha afeição. És o único em meu coração!
Ele sorriu um tanto aliviado. Adorava a esposa. Compreendendo-lhe o
temperamento vaidoso, temia que sua situação subalterna influísse no ânimo de
Nalim. Um tanto amargo, continuou:
– Sabes das notícias que ele andou espalhando na corte sobre nós dois. Diz que tu
não permitiste que eu realizasse a expedição por seres uma antiga escrava.
Quando regressei das terras da Assíria, na sondagem política ao seu poderio
militar e que as notícias não foram satisfatórias, ele espalhou que eu não cumpria
bem minha tarefa, porque tu eras uma assíria e que eu desejava proteger tua
pátria. Disse mesmo que eu seria capaz de trair o Faraó por tua causa.
– Como chegaram tais coisas ao teu conhecimento?
– Fartic, um dos servos mais leais do palácio, declarou-me que tais assuntos
partiram de Omar, pois que o ouvira repetindo a história a numerosos amigos. Às
vezes sinto vontade de matá-lo.
– Não penses em tal! Ele conseguiu insinuar-se e é o chefe da guarda real. Seria
tua morte.
– Isso não me importa! – Pecos estava alterado.
– E eu? Que faria sem ti? E nosso filho? – perguntou ela, magoada.
– Nalim tem razão, Pecos – replicou Jasar que se aproximara sem que eles,
entretidos pela palestra, o notassem.
– Jasar! Senta-te aqui e conversemos.
Jasar aquiesceu. Seu belo semblante pouco mudara. Tinha os cabelos um pouco
grisalhos e estava um pouco mais magro, mas o olhar estava mais profundo e
penetrante.
– Por que lhe dás razão? Um homem como eu, que decaiu, certamente pouco
poderá oferecer à esposa.
– Parece que esqueceste por completo teus deveres sociais e tua responsabilidade
perante tua mulher! Depois, por que te crês decadente? Será o desprezo humano
que te preocupa? Deploras por acaso teu atual procedimento?
– Não – respondeu Pecos categórico. – Sinto que agora estou agindo com honra e é precisamente isto que me aborrece. Quando era covarde, aplaudiamme, agora que luto por conservar-me digno, desprezam-me! Não compreendo.
– Não te aborreças! Agora conheces teus verdadeiros amigos. Eles, os que te
condenaram, são pobres cegos que ainda não perceberam a verdade. Agarramse
às ilusões e temem quem lhes tomou a dianteira. Por isto te condenam, mas
quando a vida torcer seus destinos e as ilusões se forem, chegarão às conclusões
a que chegaste. Tu avançaste. Teu espírito tornou-se mais consciente, deixandoos
para trás. Já passaste por inúmeros sofrimentos que eles fatalmente terão que
suportar no futuro.
Pecos ouvia-o pensativo. Permaneceu assim por alguns instantes imerso em
profunda meditação. Vendo que Jasar se calara, objetou:
– Mas se eu avancei no caminho do conhecimento, por que eles não procuram
aproveitar-se da minha experiência?
– Pelas mesmas razões que te expus há pouco. Por serem mais atrasados
espiritualmente, são menos capacitados para compreender-te. Não podem
aquilatar valores que desconhecem. Por isto, os evoluídos, quando nascem neste
plano, são incompreendidos pela maioria. Aliás, esta é uma lei natural e lógica.
Cada indivíduo sente a vida conforme sua fase evolutiva. Não se pode exigir de
uma criança a compreensão, os conhecimentos de um adulto. Geralmente, estas
mesmas crianças, quando adultas, reconhecem os valores que antes
menosprezavam. O involuído, o homem que ainda necessita maior experiência
como espírito, ainda é criança dentro da criação Universal. Não pode
compreender aquele que já avançou mais. Eles te condenam porque não sentem
como tu. Eu te previno, muitas lutas desta natureza certamente de reserva o
futuro. Porque quando nos decidimos a combater uma de nossas fraquezas
tentando vencê-la, superá-la, a vida, nossa amiga que é, encarrega-se de forjar
oportunidades de luta, oferecendo-nos ocasião para provar nossa firmeza. Assim,
forçados a aumentar a resistência que quisermos triunfar, dificilmente
reincidiremos. Jasar fez uma pausa e, vendo que os dois o ouviam interessados,
continuou:
– Certamente, a oposição que fazem aos teus nobres propósitos deixa-te tentado a
voltar à antiga vida, porém, lembra-te de que se traíres tua consciência, perderás
a dignidade. Voltar atrás agora é reincidir. Se antes ignoravas o mal que fazias,
agora sabes, e esse conhecimento torna-te mais responsável. Logo carregarás o
peso da culpa e do remorso e isso te tornará infeliz. Creia, ir contra tua alma só te
trará dor e sofrimento.
Pecos ouvia o irmão, fortemente emocionado. Jasar parecia-lhe esquisitamente diferente. Sua voz era mais grave, seu rosto empalidecera e seu corpo parecia
agitar-se em ligeiras contrações nervosas. Dir-se-ia que Hórus falava pela sua
boca.
– Vejo que alguém, algum Deus, por certo te inspirou ao pronunciares tão sábias
palavras. Mas, crê, Jasar, que não temo a luta. Procurarei enfrentá-la com
coragem, porém, o que me preocupa é Nalim. Temo criar para ela algum
sofrimento.
– Não te preocupes por mim. Estarei contigo seja onde for e como for. Meu
amor por ti vencerá todas as dificuldades.
Pecos sorriu mais sereno. Eles tinham razão. Ele estava certo! Tomada aquela
decisão, sentiu-se mais calmo.
Nalim continuou:
– Jasar, não sei por que, tuas palavras me recordaram Solimar. Em meus difíceis
momentos, era ela quem me falava como falaste hoje. Ao ouvir mencionar
Solimar, Jasar sobressaltou-se. Sentia-se angustiado por não saber o que lhe havia
acontecido. A saudade dela e da paz que sentia a seu lado enchiam-lhe a alma de
tristeza.
Com o olhar perdido num ponto distante, ele observou:
– Grande espírito. Grande criatura!
– Sinto-me angustiada ao pensar o que lhe aconteceu, onde estará...
– Tens razão – continuou Jasar. – Esteja onde estiver, será protegida sempre pela
Divindade e nada de mal lhe terá acontecido.
– Será ainda viva? – aparteou Pecos – nós a procuramos por toda parte sem
resultado. É bem possível que tenha morrido.
– Tu te enganas, Pecos. Tenho a certeza de que ela vive.
– Como, Jasar, acaso tiveste alguma notícia?
– Não, mas tenho a certeza de que se morresse, viria despedir-se de mim.
– Crês isso possível? – perguntou Nalim, admirada.
– Sim. Nada mais natural de que seu espírito, livre do corpo pesado, liberto no espaço, viesse dizer-me adeus. Eu, se partisse primeiro, certamente a iria ver.
– Dizes coisas estranhas, Jasar, que me fazem estremecer. Mudemos de assunto.
E Otias, está hoje melhor?
– Temo que não. Penaliza vê-la imóvel no leito, podendo apenas mover as mãos,
sem poder falar.
– Tanto tempo faz, mas ainda guardo profunda impressão daquela noite horrível.
Avalio o choque quando ela penetrou no quarto.
– E tudo permaneceu em terrível mistério – murmurou Pecos.
– É verdade – tornou Jasar. – Se ao menos ela pudesse falar... Tenho a certeza de
que teríamos a solução do desaparecimento de Solimar. Mas a esse recurso não
podemos recorrer. Ela tem sofrido muito, e eu agora não teria mais ânimo para
dirigir-lhe perguntas. Sei que seu raciocínio é lúcido e tem plena consciência de
tudo quanto a rodeia. Aprendi a ler em seus olhos de morta-viva tudo quanto lhe
vai no íntimo. Tenho percebido seu temor imenso. Em certas ocasiões, fica toda
banhada em suor e seus olhos demonstram pavor. Quando nasceu teu filho, ela
sentia-se mal todas as vezes que o via. Tanto que fui forçado a evitar sua
presença no quarto. Parece que ao vê-lo, ela se recorda do nosso Matur! Se ele
vivesse, seria já um rapazinho. Eram estes com certeza os motivos que a
torturavam.
– Pobre irmão! Tens sido muito dedicado para com ela. Comove-me tua
generosidade para com uma mulher que não amas e foi possivelmente a
causadora de toda a desgraça que se abateu sobre esta casa.
– Vês mal, Pecos. Quem pode saber na realidade o que aconteceu? Crês por
acaso que se Otias foi a causadora da morte do filho, não estará sofrendo
terrivelmente, roída pelo remorso, sem poder desabafar? Já pensaste que uma
criatura condenada à imobilidade, sem poder falar, forçosamente possuirá um
mundo interior muito mais intenso? Se esse mundo for belo, será menos infeliz,
mas se ele estiver composto de horrores e maus pensamentos, será um
insondável abismo de torturante noite. Eu não sou infeliz, pois que ainda posso
andar livremente, aspirar o perfume da flores, gozar o prazer de uma boa
palestra, mas ela, castigada tremendamente em sua vaidade de mulher,
transformada em uma pobre sombra humana, é digna de estima e piedade.
– Realmente – murmurou Nalim sentindo um calafrio pelo corpo – ela sofre
horrivelmente. Creio que tens razão, Jasar.

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