CAPÍTULO XXVII

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A morte de Otias

Na casa de Jasar, tudo decorria normalmente. Nalim, amargurada entre as
saudades do filho que já se demorava e as recordações do esposo, vivia triste.
Isto fez com que os laços de amizade que a uniam ao resto da família,
principalmente a Solimar, se estreitassem.
Esta dividia seu tempo entre Otias e Nalim, sendo mesmo o elo de tolerância e
simpatia que começara a unir as duas cunhadas. Jasar compreendia o bem que a
presença serena de Solimar trouxera àquela casa. Mas dificilmente podia trocar
duas palavras a sós com a mulher que adorava. Solimar evitava-lhe a
companhia, desejosa de mostrar indiferença a fim de poupar inúteis sofrimentos
a Otias.
Sabia que esta era ciumenta e adorava o marido. Depois, por que haveria de
palestrar com ele a sós? Adorava fazê-lo, mas não seria ainda mais incentivar
uma afeição proibida?
As coisas seguiam seu curso normal, mas todos notavam que Otias estava cada
dia mais abatida e seu estado, mais delicado.
Certa manhã, ela acordou com mais febre que o usual. Jasar, ao visitá-la,
entristeceu-se e proibiu que a retirassem do aposento. Deu-lhe ainda mais alguns
medicamentos.
Condoídas pela situação, as mulheres da casa reuniram-se ao redor do seu leito,
pretendendo demonstrar sua solidariedade e estima. Ficaram a seu lado durante
todo o dia, jamais deixando-a só.
Jasar, prevendo que o fim não se faria esperar, não saiu do aposento, atendendo-
a sempre que necessário.
A noite chegara. Otias caíra em grande abatimento e o coma se aprofundava.
Seu fraco e cansado coração descompassava-se, falhando a cada instante.
De repente abriu os olhos. Viu à sua volta e reconheceu os que a cercavam. Um
clarão de prazer transpareceu e ela fechou-os de novo. Pensava confusamente:
– Eles preocuparam-se por mim. Estimam-me. Estou pior. Será o fim?
Tenho medo. O que se ocultará atrás da morte?

Mas notou em certo momento, que alguém se aproximava do leito. Era seu
querido pai! Assustada, fixou-o.
Ele lhe disse:
– Filha, regozija-te. Soou a hora da tua libertação. Vim buscar-te!
Otias, angustiada, pensou em Jasar e um pensamento de ciúme ocorreu-lhe com
rapidez.
O espírito do velho Osiat, olhando-a triste, continuou:
– Não sejas egoísta. Pensa que recebeste em demasia a generosidade daqueles a
quem pretendeste ferir. Vim para levar-te a um lugar de repouso, paz, onde
estarás livre! Poderás conversar, rir, cantar, seres enfim como antes, ou melhor,
mais leve, mais feliz! Se teimares em agarrar-te às coisas que te cercam,
sofrerás muito mais o momento que é inevitável.
Vendo que ela concordava, triste, procurando ser corajosa, Osiat sorrindo
continuou:
– Tenho uma surpresa para ti. Não vim só. Alguém espera ansiosamente para
abraçar-te e conduzir-te ao novo destino!
– Quem? – perguntou o pensamento de Otias.
– Olha e verás! – respondeu-lhe Osiat.
Ela viu caminhando para ela a figura amorosa de sua mãe.
Otias não pôde sufocar a emoção. As lágrimas copiosas deslizavam por suas
descoradas faces.
Apesar de aparentar dormir, todos os que velavam notaram essas lágrimas e por
sua vez penalizados, julgando que ela sofria, sentiam os olhos molhados e o peito
opresso.
Mas Otias era feliz. Sentia a mão macia e fresca de sua mãe acariciar-lhe a
testa, os cabelos. A emoção era sem par naquele instante.
Num relance, viu todas a suas passadas ações e um sentimento vivo de vergonha
e arrependimento frente ao espírito de sua bondosa mãe a envolveu.
– Filha – murmurou suavemente o espírito daquela bela mulher – nada receies. O Senhor te protegerá. Nós estamos aqui. Entrega-te sem receio ao sono que
aliviará teus sofrimentos. Quando acordares, estarás em nosso lado, livre e feliz!
Nesse instante, Otias sentiu aumentar a emoção. Acabava de vislumbrar à
beira do leito, a figura adorada de seu querido filho. Este lhe sorria
amorosamente, e estendendo-lhe os pequeninos braços, murmurou docemente:
– Vem...
Num supremo esforço, sentindo que algo se rasgava em todo o seu ser, Otias
gritou desesperada:
– Filho, perdão! Leva-me contigo!
Um grito conjunto de terror escapou do peito das mulheres que velavam. Otias
falara! Seu grito rouco, gutural mesmo, fora perfeitamente compreensível.
Falara e estendera, como que movida por estranha força, os braços para o alto,
suplicante, depois deixou-os cair. Seu corpo estertorou. Estava morta!
As três mulheres deixaram que as lágrimas rolassem, comovidas, com o
acontecimento.
Jasar, mais prático, acercou-se do leito, tentando verificar se ainda naquele corpo
inerte existia um sopro de vida.
Um triste suspiro escapou-lhe do peito bondoso. Ele não a amara jamais como
mulher, mas sua afeição por aquela que partilhara a infância feliz, unida a ele
pelos laços de família e ainda mais por seu longo e penoso sofrimento durante
aquela triste enfermidade, haviam estabelecido em seu coração uma terna
amizade que uma compreensão profunda da vida consolidara.
Ela gritara pelo filho. Ele ali estivera com certeza. Jasar tinha esta profunda
convicção. Somente sua presença adorada teria sido capaz de produzir em Otias
a reação tão extraordinária que vencera a imobilidade do corpo, arrancando-lhe
aquele miraculoso grito de súplica e amor.
Se Matur estivesse presente, que soubesse perdoar e recebesse o espírito daquela
que, apesar de suas imperfeições, o amara e sofrera tanto tempo o acidente que
lhe roubara a vida!
Jasar sentia que havia cumprido sua tarefa. Tudo fizera para amparar e
esclarecer aquela que fora sua esposa, na convicção de que este era o dever que a vida lhe impusera.

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