CAPÍTULO XXII

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Tributo aos erros do passado

A madrugada ia alta quando Pecos saiu de Dresda, um mês após os últimos
acontecimentos.
Levava um jumento com sua pobre bagagem e uma angústia extrema
comprimindo-lhe o peito. Iniciara enfim a viagem de regresso ao lar, para ele
agora desconhecido.
Seus olhos estavam vermelhos pelo esforço realizado no sentido de conter as
lágrimas da despedida. Estimava realmente a velha e rude camponesa e ao vêla
trêmula e chorosa ao despedir-se, sentira o peito opresso e os olhos úmidos.
Estivera também, no dia anterior, junto de Samir e Solimar que lhe deram uma
caixa de madeira de presente para sua esposa.
Sua esposa! Como estaria ela? Como o receberia? Seria justo voltar para um lar
que ele não mais conhecia?
Seus pensamentos eram tristes e torturantes. Quem o visse passar, jamais
reconheceria nele o antigo soldado. Mudara bastante. O rosto manchado ainda
pela horrível queimadura que sofrera, o corpo curvado, os cabelos quase
brancos, o tornavam um velho aos quarenta e dois anos.
Seus trajes limpos, mas humildes, eram comuns aos camponeses mais pobres.
Sua bagagem pouco numerosa atestava sua penúria.
Entretanto, não era a situação financeira que o preocupava, mas somente seu
drama interior. Para um homem sem passado, aquelas roupas e aquela situação
eram naturais, para o antigo lanceiro, seriam talvez dolorosamente humilhantes.
O esquecimento temporário do passado é uma trégua concedida ao espírito e
uma oportunidade para novas experiências. Um dia, quando voltar a recordar-se
do que foi, estará enriquecido por valores mais verdadeiros. Samir entregara-lhe,
ao despedir-se, um pequeno saco com algumas jóias, dizendo que o fazia a título
de empréstimo.
Percebendo a delicadeza do ofertante, ele, embora enrubescido, não se atrevera
a recusar. Tinha assim recursos para atingir o objetivo da viagem. Dois meses
levou Pecos para chegar ao termo de sua jornada. Quando finalmente entrou na
cidade, seu coração batia fortemente. Aquela deveria ser a sua terra! Sua gente!

Parecia-lhe mesmo muito conhecidas aquelas ruas pedregosas e tortuosas. Sentia
que já vivera ali.
Era meio-dia, e a atividade nas ruas era grande. Pecos, cansado, coberto de pó,
sujo e angustiado não sabia o rumo a tomar.
Ninguém reparava nele, pois que os viajores eram comuns na cidade. Ninguém
suspeitou sequer de sua identidade e se ele contasse, talvez não acreditassem. Ele
caminhou a esmo pelas ruas.
Ao atingir o portão do palácio do Faraó, sentiu por momentos esquisita emoção.
Permaneceu longo tempo frente ao enorme pórtico, lutando com aquela vaga
reminiscência.
Cansado, abatido pelo supremo esforço realizado, sentou-se ao chão para
descansar. Um lanceiro aproximou-se dele e pensando que fosse um mendigo,
gritou-lhe exasperado:
– Retira-te. Não sabes que é proibido parar aqui? Avia-te, antes que te obrigue a
sair à força.
Surpreso, com o rosto em fogo, Pecos levantou-se e gritou-lhe:
– Cala-te! Não deve falar-me assim. Sou teu superior e vais te arrepender. Sou
Pecos, o guerreiro!
Sonoras gargalhadas acudiram-lhe aos ouvidos, zombeteiras.
– Ouves? – gritou um terceiro rindo sonoramente, dirigindo-se a um seu
companheiro que se aproximava. – Este nobre senhor diz que nos pode castigar e
que é nosso superior! Ainda intitula-se o grande herói que deu a vida pela nossa
pátria! Vamos dar-lhe uma lição.
Rápidos, pegaram-no brutalmente, balançando-o no ar e atiraram-lhe com força
na estrada. Pecos sentiu que lhe enfiavam facas pelo corpo. Uma dor aguda na
cabeça e, atordoado, perdeu os sentidos.
Quanto tempo permaneceu assim? Não pôde precisar. Quando voltou a si, o
corpo lhe doía terrivelmente. Sentia na carne o ardume provocado pelas pedras
do chão que lhe haviam coberto algumas feridas que ainda sangravam. Com
dificuldade, arrastou-se para uma das margens do caminho e, apesar da
perturbação que lhe ia no íntimo, pôde perceber que lhe chegavam aos ouvidos
palavras de zombaria dos transeuntes que o supunham ébrio. Quando pôde
recordar-se do sucedido com clareza, sentiu uma dúvida invadir-lhe o íntimo.
Como lhe doera a humilhação! Haviam zombado dele e não o reconheceram!
Ah! Se ao menos ele pudesse recordar-se do passado! Mas a névoa ainda
obscurecia sua memória.
E... se Solimar estivesse enganada? Ele poderia não ser o guerreiro Pecos. A
princípio esta idéia assaltou-lhe levemente, mas depois ganhou força e a dúvida
voltou a dominar-lhe os sentimentos.
Ele não era Pecos. Se fosse, os soldados tê-lo-iam reconhecido. Que fazer? Que
rumo tomar? Ir até a casa onde residia a família que não lembrava ser sua? E se
lá o esperassem novas humilhações? Poderiam rir-se dele e nem sequer recebê-
lo.
O tempo ia passando e ele cada vez mais engolfado por pensamentos torturantes,
não percebia sequer que estava ali havia algumas horas. A luta interior
continuava.
O que deveria fazer? E se de fato ele fosse o guerreiro Pecos?
O crepúsculo descia, e ele ainda permanecia sentado num canto à beira do
caminho.
Por fim, decidiu-se não ir imediatamente à procura da mulher que diziam ser sua
esposa. Procederia primeiro a algumas indagações e, depois, de acordo com o
que viesse a saber, decidiria.
A custo ergueu-se e só então lembrou-se de que não se havia alimentado durante
todo o dia. Sentindo-se fraco e desanimado, resolveu procurar uma estalagem
barata, pois que possuía poucos haveres para o pagamento, a fim de refazer-se.
No dia seguinte iniciaria as indagações.
Assim decorreu para Pecos seu primeiro dia de retorno à terra natal. No dia
imediato, levantou-se cedo e, preparando-se rapidamente, saiu para a rua. Ia
decidido a usar todos os meios para obter as informações de que necessitava.
Instintivamente caminhou para o pátio do mercado que, apesar da hora matinal,
já formigava. Sua presença nenhuma atenção despertava entre o povo e era
natural que não fosse reconhecido. Seu aspecto era bem outro! O rosto marcado
pelas cicatrizes, seus cabelos embranquecidos, o corpo algo encurvado, nem de
leve faziam lembrar a imponente figura do guerreiro Pecos, belo, forte, no
esplendor de sua forma física, arrogante e altivo.

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