XXIII

46 8 1
                                    

Eu mordi aquele suco azul congelado sentindo meus dentes enrijecerem, tinha um gosto melado de puro açúcar e passeou pela minha boca até derreter.

- Isso é deliciosamente perigoso – murmurei enquanto uma sensação gelada passava por todo o meu corpo.

- Acho que é um dos alimentos mais malignos que existem – acrescentou Pedro que já havia terminado seu sorvete.

Uma moça com um corpo definido passou caminhando com facilidade a nossa frente, com um rabo de cavalo alto e laranja balançando, e uma roupa justa, verde gritante e esportiva.

- Você está usando umas roupas bem leves, né? Não está com frio? – indaguei apreciando a visão de uma blusa preta leve de mangas compridas e gola V.

- Hoje não.

Uma borboleta de coloração preta começou a passear ao nosso redor, tripudiando no ar exatamente como uma bailarina.

No banco a nossa frente um homem de meia idade usando uma boina xadrez e óculos fumava um cigarro respirando toda a fumaça, deixando-a descansar em seus pulmões por um longo período de tempo e depois soltando-a em longas baforadas.

- Você sente saudades de fumar? – perguntei enquanto abraçava meus joelhos.

- As vezes, mas temos um acordo, certo? – Ele sorriu enquanto colocava o dedo indicador nos lábios, eu corei.
O trem passou atrás de nós formando uma ventania em nossas costas, a folhas e a poeira levantaram voo batendo contra nós como o estalo de um chicote.

- Por quê você cisma tanto em esconder de sua família que estamos saindo? – indagou quando dei a última mordida em meu picolé.

- Eu já disse, só não sinto que eu esteja pronta para lidar com isso – menti uma segunda vez.

- Nós dois sabemos que isso não é verdade, Carmen.

Eu fiquei em silêncio pensando em alguma desculpa enquanto observava dois pombos brigando por um pedaço de pão duro.

- Eu... ãh... não quero ficar de castigo.
Pedro riu. – Você acha que mente muito bem, Carmen mas você mente muito mal. Acho que já te disse isso.

- Eu não sei o que me entrega!

O rapaz de olhos lilases me olhou incrédulo. - Eu... ãh... também não imagino mas hum... pode ser o fato de você ãh... desviar os olhos e talvez esse seu ãh, hum, ééé....

Agora os dois pombos transformaram-se em três, todos eles lutavam vorazmente até que o pão se quebrou em várias migalhas e os pássaros contentaram-se com aqueles restos no chão.

- E aí, vai contar ou não? – inquiriu depois de um longo tempo em silêncio.

- Eu imaginei que se deixasse pra lá por um tempo você ia se esquecer.

- Você está me subestimando, Carmen.

Eu girei meu corpo enfiando-me abaixo de seus braços e deixando meus rosto próximo ao de Pedro, fiz com que meus lábios tocassem os seus com uma calma cálida preenchida por volúpia, pouco a pouco o beijo tornou-se mais intenso e aprazível até que o jovem se afastou encarando-me com profundidade.

- Dessa vez você foi um pouco mais esperta contudo não vai me distrair. – Eu estalei a língua me afastando dele e cruzando os braços ossudos. – O quão importante é manter isso guardado?

- Um bocado – resmunguei.

- Para mim é um bocado importante te compreender, se vou mentir necessito saber porque.

Eu girei os olhos e dei um longo suspiro, Pedro não me deixava escolha:

- A questão não sou eu, a questão é você!

- Eu?

- É!

O rapaz olhou para o horizonte ponderando, então cerrou os olhos e franziu os sobrolhos, chegando por fim a uma conclusão – eu não entendo.

- Você não enxerga? Camilo te conhece, sabe das coisas que você fez e não vai manter isso em segredo, ninguém vai querer que você saia comigo ou que nos vejamos, vão dizer coisas ruins de você, coisas que machucam e deixam cicatrizes. Eu não quero que te machuquem.
Pedro caiu na gargalhada fazendo o seu corpo ir para frente e depois para trás. – Ah meu bem, é você que não enxerga. Existe um número limitado de pessoas que podem me machucar e você está no topo desta lista, tanto maligna quanto benigna, não me importo com a opinião alheia, eles não podem me flagelar e isso inclui sua família, somente você tem essa capacidade, ainda que as suas chagas sejam as que eu mais anseio por receber.

- Uau, isso soou bonito.

- Obrigado.

O sol escondido pelas nuvens ainda estava a pino, sequer tinha se passado trinta minutos ainda que parecesse ter passado horas. Se eu calculasse o tempo de todos os eventos que aconteceram desde aquela manhã eu daria pelo menos uma semana, qualquer um em meu lugar daria.

- Talvez eu deva contar para eles – murmurei contudo o trem passou chacoalhando no exato instante que eu disse isso.

Eu consegui visualizar os lábios de Pedro, formarem um “quê?” que se propagou numa tonalidade cinzenta ao nosso redor.

Eu aproximei minha boca de seus ouvidos dizendo minha frase uma segunda vez e ele fez o mesmo comigo, colocou seus lábios rubros sobre minha orelha fazendo-a pinicar com sua respiração languida. – Acho uma boa ideia.

O trem já havia passado ainda assim eu continuei cochichando ao pé de sua orelha. – As coisas vão ficar muito mais difíceis a partir de agora né?

- Vão sim, mas porque ainda estamos cochichando?

- Porque é divertido.

Eu e Pedro continuamos a conversar até que desse o horário de abrir a floricultura, neste momento ele me acompanhou até a esquina da minha casa onde ficamos na penumbra.
Antigamente minha rua era calma e tranquila, era raro as crianças saírem de casa e ninguém tentava se meter na sua vida todavia uma senhora de cabelos grisalhos e um pescoço longo se mudara pra lá recentemente e possuía o mau hábito de empertigar seu pescoção pela janela e espiar a rua de cabo a rabo depois espalhar para todos meias verdades que, apesar de errado, todos adoravam saber.

Eu entrei em minha casa, organizando a floricultura para abri-la e então parei no meio do processo encarando meu celular de modelo ultrapassado, abrindo o grupo da família e enviando uma mensagem:

“Por que todo mundo não janta aqui em casa hoje? Eu tenho uma coisa importante para dizer.”


CarmenOnde histórias criam vida. Descubra agora