ANA

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Noites como aquela eram solitárias. Ana tentava se distrair traçando desenhos de bordado, sozinha em casa, esperando os filhos e o marido para jantar. Primeiro chegou Thomas, abrindo a porta da frente sem nenhuma cerimônia. Acenou para a mãe com a cabeça, provavelmente tentando esconder o cheiro de bebida em seu hálito, e partiu direto para cima da comida.

— Não vai esperar o seu pai?

— Só se eu quisesse jantar amanhã. — Zombou Thomas.

Ana virou o nariz e continuou a trabalhar. Thomas terminou de comer, se espreguiçou e caminhou até a mãe, remexendo os bolsos.

— Aqui. — Lhe entregou um saquinho cheio de pequenas pedrinhas amarelas. Eram gotas de caramelo, aquele doce caro que Ana tanto gostava.

Thomas estava perdoado e se deitou na rede pendurada no canto do cômodo, uma mistura de cozinha e sala, sempre repleta de materiais que a mulher trazia de seu ateliê para que pudesse trabalhar enquanto passava o tempo com a família. Conversaram um pouco, até que Thomas adormeceu e sua mãe, depois de trabalhar por mais algum tempo, também caiu no sono.

Batidas na porta. Ambos acordaram com o susto desse barulho incomum: quem bateria na porta da casa a essas horas? Vítor tinha as chaves, e, assim como o filho mais velho, nunca foi educado o suficiente para bater antes de entrar. Ana e Thomas se entreolharam, sem saber exatamente como proceder. Então as batidas voltaram, mais fortes e desesperadas, convencendo a mulher a se levantar e destrancar a porta de uma vez por todas.

Romeo. Descabelado, de olhos arregalados e respiração entrecortada.

— O que aconteceu? Por que tão tarde? — Começou Ana, preparando a bronca. Então esticou a cabeça em busca do marido. — Cadê o seu pai?

Foi o suficiente para que Romeo começasse a chorar, de forma tão descontrolada que lhe renderia uma surra caso a mãe e o irmão não estivessem tão perplexos com a situação. Sempre tão silencioso, o menino agora gritava em desespero. Foi Thomas quem se adiantou para cima dele, procurando algum tipo de ferimento, algo que justificasse tal comportamento infantil em um garoto de quase treze anos de idade. Nada.

— O que aconteceu?! — Gritou por fim.

— O pai foi engolido. — Soluçou Romeo. — Foi engolido pelo mar!

Ana não podia acreditar no que ouvia. A vida inteira tinha se preocupado com a ambição exacerbada de Thomas ou com a fragilidade do filho mais novo, mas nunca esperaria uma desgraça vinda do lado de Vítor. Engolido pelo mar? Aquilo era impossível.

Durante dias seguidos Thomas mergulhou em busca do corpo do pai. Fez Romeo repetir a história inúmeras vezes, mas as versões formuladas por seu irmão mais novo foram ficando cada vez mais absurdas. Quando o menino começou a cogitar ter visto monstros marinhos devorando o pai até os ossos, Thomas se convenceu de que era hora de parar. Estivesse onde estivesse, Vítor estava morto.

Como era possível sua presença silenciosa fazer tanta falta? Em vida, ele só comia, dormia e saía para o mar. Ainda assim, a luz de sua aura quase santa alegrava o espírito dos filhos, lhes garantindo a certeza de um mesmo futuro brilhante. Alegrava o espírito de Ana, que todos os dias antes de dormir, repetia a si mesma: somos boa gente, temos uma boa vida.

Naquele momento, no entanto, o corpo de Vitor estava em algum lugar no fundo do mar. Apodrecendo em uma gruta como era mais provável, ou na barriga de um monstro marinho como assegurava Romeo.

"O mar não admite mentiras. Recompensa os bons e pune os maus". Ana entendia que estavam sendo punidos, ainda que não soubesse o porquê. Não importava. Era tempo de esquecer as pérolas, a pesca, tudo o que o mar poderia trazer de bom. Era tempo de temê-lo, o que, em uma ilha pequena como aquela, significava vigilância constante.

Thomas se considerava o novo chefe da família, mas seus desentendimentos com a mãe fizeram com que passassem por tempos turbulentos. Ele queria trocar a casa por uma no meio da vila, queria ensinar Romeo a mergulhar e, acima de tudo, queria a sua pérola. Ana resistia a cada uma das propostas, sem nenhum plano melhor do que manter os filhos trancados até o mar acalmar sua ira.

Mas não importava o que fizesse, Thomas já não pertencia à mãe. Voltava cada vez menos para casa, trazia cada vez menos presentes, até que suas visitas se resumiram a discussões em torno da pérola.

Mesmo Romeo, aquele bom menino, covarde e obediente, ainda carregava em seus olhos alguma vontade de viver. Ana chorava, o ameaçava, o espancava e implorava, atirada em seus pés, mas nada disso adiantou. Em segredo, Romeo arquitetava sua fuga. Passou a acompanhar o irmão em viagens para outras pequenas ilhas do arquipélago, e aos poucos aprendeu a manobrar um veleiro. Até que um dia, assim como Thomas, ele também desapareceu. Deixou para trás um punhado de dinheiro e o buraco que escondia a pérola rosada completamente vazio.

Ana passou a morar sozinha na turbulenta Praia de Fora, na companhia das gaivotas e do tão odiado mar. Quando a raiva era grande o bastante, ela gritava insultos contra as águas que haviam levado embora tudo o que um dia lhe tinha sido importante. Na maior parte do tempo, entretanto, permanecia calada, sozinha, traçando desenhos de bordado para tentar se distrair.

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